Ruy Cinatti
OBRA

Lembranças

Chorar pelos vivos que falecem
é natural - coisa lacrimal.
A carne sente a falta do costume
às tantas ... tem fome.
Não choro ninguém.

Quando digo chorar é outra pressa
de chegar a tempo
da conversa atenta com um amigo
que nos quer bem.

Chorar por ninguém é chorar pelos vivos
que já morreram, sem o saber,
e vivem no seu presídio.

O resto, repito, é fisiologia
provocada, e ainda bem, pelo riso,
ou pela dor que temos de já ter nascido
e sermos chorados por alguém.


VIGÍLIA

Paralelamente sigo dois caminhos
Abstracto na visão de um céu profundo.
Nem um nem outro me serve, nem aquele
Destino que se insinua
Com voz semelhante à minha. O melhor do mundo.
Está por descobrir. Não segue a lua
Nem o perfil da proa. Vai direito
Ao vago, incerto, misterioso
Bater das velas sinalado e oculto

Quero me mais dentro de mim, mais desumano
Em comunhão suprema, surto e alado
Nas aragens nocturnas que desdobram as vagas,
Chamam dorsos de peixe à tona de água
E precipitam asas na esteira de luz.
Da vida nada se leva senão a melhoria
De um paraíso sonhado e procurado
Com ternura, coragem e espírito sereno.

Doçura luminosa de um olhar. Ameno
Brincar de almas verticais em pleno
Sol de alvorada que descerra as pálpebras.


MEMÓRIA AMADA
Para Alain Fournier

Vinham de longe em bandos. Acorriam
Jubilosos. Fantasias
De parques pluviosos
E, descendo,
Os patos bravos lançados
Entre juncos, salgueiros e veados.
Tarde,
Muito tarde, uns olhos tais
Haviam de aparecer, sobressaltados
Entre enigmas e um floco de cabelos
Osculado pelo vento. Alegorias…
Do agora ou nunca e do momento
Definido. Trégua impensada,
Insuspeita, no perfume alado
Da página dobrada e abandonada
Dum livro interrompido. Sinto a dor fina,
Finalmente atravessada e suave,
– Quase saudade.


(...)

Foi sobre a relva orvalhada
pelo frescor de um riacho,
quando o sol obliquava
e em volta era tudo selva,
que eu comi uma pantera
escura, feroz, inglesa,
com o cheiro de violetas
debaixo dela e de mim.

(Fulva para quem quiser
modas pré rafaelistas,
a pantera! Tanto faz!
Ou morena. Convenção
como convém a uma inglesa
convencional, de ocasião.)

E quando nos despedimos
– era noite, havia estrelas –
disseste com essa fleuma
que tão mal me fica a mim:
– I’ll see you later. Do come.
Vem amanhã tomar chá.
Eu gostar muito de ti.


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