Nâzim Hikmet
OBRA
 

Domingo

Hoje é domingo.
Pela primeira vez, hoje,
deixaram me sair ao sol,
e eu,
pela primeira vez na vida,
espantado de o ver tão longe
tão azul
tão vasto,
imóvel olhei o céu.
A seguir sentei me na terra, com respeito,
encostei me à parede branca.
Nesse instante, nada de ideias.
Nesse instante, nem luta, nem liberdade, nem mulher.
A terra, o sol e eu.
Sou feliz.


O mesmo coração e a mesma cabeça

Não é para me gabar,
mas atravessei de um jacto, como uma bala, os meus dez anos de prisão.
E se deixarmos de lado as dores no fígado,
o coração está igual, a cabeça é a mesma de antes.


A viagem

A viagem fazemo la num qualquer modesto cargueiro
Existe ainda um porto onde não tivéssemos tocado?
Existe alguma espécie de tristeza que ainda não tivéssemos cantado?
O horizonte que a cada manhã tínhamos pela frente
Não era igual ao que à noite deixávamos para trás?
Quantas estrelas desfilaram à nossa frente
Roçando as águas.
Não era cada aurora o reflexo
Da nossa grande nostalgia?
Mas é em frente que vamos, não é verdade?, é em frente que vamos.

(Tradução de Rui Caeiro)


Um pouco de pessimismo

Tu estás lá em cima
No meio dos ramos carregados de frutos,
Os olhos verdes cheios de sol
A boca lambuzada de mel,
E eu cá em baixo junto da árvore
Já com os pés para a cova
Ir me ei muito antes de ti
Não me vais ter na velhice.

(Tradução de Rui Caeiro)


O espelho encantado

Praga é um espelho encantado
Ao olhar me nele
Encontro os meus vinte anos
Sou como um salto em frente
Sou como trinta e dois dentes
sem cárie
E o mundo é uma noz
Mas não quero nada para mim
Só a mulher que amo
A tocar os meus dedos com os seus
Que abrem todos os mistérios do mundo

As minhas mãos partem o pão
pouco para mim
Muito para os meus amigos
Nas aldeias da Anatólia
beijo olhos que sofrem de tracoma
E chego algures a terra distante
Para a Revolução mundial
Trazem o meu coração num coxim de veludo
Como se fosse a ordem da bandeira vermelha
Uma fanfarra toca a marcha fúnebre
Sepultamos os nossos mortos junto de um muro
Sob a terra
Somo sementes fecundas
E as nossas canções estão escritas na terra
não em turco, russo ou francês
Mas em cançonês
Lenine está acamado numa floresta com neve
Franze as sobrancelhas
A pensar em alguém
Olha até ao fim das trevas brancas
Vê os dias que hão de vir

Sou como um salto em frente
Sou como trinta e dois dentes
sem cárie

E o mundo é uma noz
Com uma casca de aço
Mas inchada de esperança
Praga é um espelho encantado
Olho me nele
Mostra me no leito de morte
A testa alagada em suor
Como se a cera da vela tivesse gotejado
Os braços ao longo do corpo
A tapeçaria verde
E pela janela
Os telhados cobertos de fuligem de uma grande cidade
Esses telhados não são os de Istambul
Os meus olhos estão abertos
Ainda os não vieram fechar
Ainda ninguém sabe
Inclina te para mim
Olha nas minhas pupilas
Verás nelas uma mulher jovem
Na paragem do eléctrico à espera à chuva
Fecha me os olhos
E em bicos de pés
Sai do quarto, camarada.

(Tradução de Rui Caeiro)


Quadra

Como sementes deitadas à terra espalhei os meus mortos
alguns repousam em Odessa, alguns em Istambul, outros ainda em Praga,
o país que eu prefiro é toda a terra
quando chegar a minha hora, cubram me com a terra inteira.

(Tradução de Rui Caeiro)


Esta manhã uma vez mais acordei
e confusamente se lançaram sobre mim
o muro, a coberta, o vidro e a madeira,
e a luz de prata escura reflectida no tecto.

Lançaram se sobre mim um bilhete de eléctrico,
ali caído, a metade apagada do meu sonho,
este país hostil denominado quarto de hotel,
três linhas de um poema, e o amarelo da palha.

Lançaram se sobre mim o tempo de rosto desmaiado
e recordações de chuva, a tua ausência na cama,
e notícias de nós dois e da nossa separação.
Esta manhã uma vez mais acordei.

(6 de Setembro de 1960)

(Tradução de Rui Caeiro)


Entrei numa cidade
para passear nas suas ruas
para trocar saudações com os seus homens
mas já não há ruas por onde andar
ninguém para responder à minha saudação…

(1963)
(Tradução de Rui Caeiro)


Meus irmãos

Meus irmãos
É preciso atrelar os nossos poemas
à charrua do boi magro
É preciso que este se enterre até aos joelhos
Na vaza dos arrozais
É preciso que eles façam todas as perguntas
É preciso que recolham toda a luz
É preciso que os nossos poemas como marcos quilométricos
Balizem as estradas
É preciso que sejam o sinal a anunciar a aproximação do adversário
É preciso que batam tambor na selva
E enquanto na terra houver um único país ou um único homem escravo
E enquanto no céu restar nem que seja uma única nuvem atómica
É preciso que os nossos poemas dêem tudo por tudo, corpo e alma para a grande liberdade.

(Tradução de Rui Caeiro)