Luís Graça
OBRA
 

Meu falo, meu touro

Meu falo, touro
em ponta, desembolado
alfange, mouro, em ronda
sempre excitado

Eu calo, rouco
e tu zonza, nua num estrado
que range, pouco
numa onda, sodomizado

Meu halo, louco
é santo divinizado
abrange in loco e conta
que é castrado

Empalo, touro
meu falo, desembolado
alfange, mouro, em ronda
foi sepultado


AFECTOS
 
Fiquei a saber num destes fins-de-tarde
que se podia estar subnutrido de ternura
e afoguei-me no desânimo que me acenava do horizonte
 
Caiu-me uma pérola húmida do olhar
pensei apenas em guardar em mim
a saudade das carícias tecidas em silêncio
 
Não foi possível, acendeste-me o desejo dos teus dedos
apetecia-me beijar-te como quem afaga um charuto com os lábios
vendo subir aos céus o fumo do teu cio
 
Fiquei a saber numa destas noites de lua cheia
que se podia estar subnutrido de ternura
caiu-me uma pérola húmida do olhar
 
Apesar dos lobisomens
não se poderem dar ao luxo de cultivar mágoas
nas plantações do estio que passa
 
Apenas lhes é concedido o grato subterfúgio
de uivar nas trevas como quem urde um poema
às escondidas de Deus
 
Fiquei a saber numa destas manhãs de trovoada
que o teu corpo era feito de raios e coriscos
e que os teus pais não te deixavam fazer amor sozinha
 
Por terem medo
dos teus gritos de prazer
na hora de te sentires mulher
 
Mesmo assim fazias amor sozinha
dispensando-me o teu corpo
em marés de luz
 

Fiquei a saber numa destas madrugadas de fogo
que a ternura está guardada num baú
disfarçado de cofre à prova de sentimentos
 
 
Nessa mesma hora
senti o meu ser
a dissolver-se devagar
 
 
Ao longe, muito ao longe
lembro-me de ter sentido um arrepio na alma
como se tivesses pintado o teu sorriso no meu peito
(Paxion)


Pequena receita para ressacas de amor

    (Para D., como uma lágrima a fugir do coração)
 
    — 1 cigarrilha Romeo y Julieta mini, de Alvarez y Garcia.
    — cinco cigarros John Player Special (preto).
    — 1 garrafa de mini-bar de vodka Absolut.
    — 2 garrafas de mini-bar de Fonseca Porto, Tawny Port.
    — 1 garrafa de mini-bar Mateus Rosé.
    — 2 comprimidos Apton 20.
    — algumas (muitas) lágrimas (orgulhosamente verdadeiras).
 
 
Mãos nas mãos
com o Douro em fundo
tu e eu sabemos
que tudo está dito
 
Mãos nas mãos
com o Douro em fundo
tu e eu sabemos
que nem tudo é fúnebre
 
Mãos nas mãos
com o Douro em fundo
tu e eu sabemos
que apenas custa
 
o singelo momento
em que os meus olhos
encontram os teus
e o teu abraço
 
vem de encontro a mim
enquanto os teus lábios
beijam minha face
e os teus cabelos
 
cheiram a promessas
feitas d’utopias
que eu sei fatais
como as armadilhas
 
do amor eterno
como as armadilhas
da lua velhaca
do mar traiçoeiro
 
E quando tu partes
eu fico a pairar
como se os meus passos
já não fossem meus
 
E olhos nos olhos
mas já sem te ver
preciso de ti
das tuas memórias
 
Caminho na rua
e fumo um cigarro
como um Romeu
órfão de Julieta
 
Depois fumo mais
tenho um maço preto
que tinha doirados
nos Lotus do sonho
 
Ando pelas ruas
sem saber porquê
e os cães que ladram
sabem que te amo
 
O nome da rua
é Guerra Junqueiro
como se poético
fosse o nosso amor
 
Por fim chego ao ‘Douro’
que já não tem água
mas um cemitério
com gatos e gente
 
E sem saber como
sentado na cama
como um pugilista
que não sabe o ringue
 
solta-se uma lágrima
que me molha os lábios
e sei que preciso
de saber de ti
 
Então abro a porta
do meu mini-bar
e bebo de um fôlego
um Absolut
 
E depois desisto
da sobriedade
e bebo dois Tawny
sem ser por maldade
 
E encho a banheira
d’água muito quente
deito-me lá dentro
a pensar em ti
 
No dia seguinte
no regresso a Lísbia
sei que vai doer
como sempre dói
 
Mas sei a ternura
com que me disseste
que as minhas mãos
te deram calor
 
E fico a pensar
que sofrer é fado
tocado ao relento
fumado ao luar
 
E quando me deito
anestesiado
a sonhar contigo
ainda acordado
 
Sei que vai ficar
tanta coisa boa
que choro com gosto
o que já vivemos
 
E quando sonhares
teus sonhos privados
lembra-te de mim
com saudades do vento
 
Porque
mãos nas mãos
com o Douro em fundo
tu e eu sabemos
que tudo está dito


UM SPRINT PARA O TEU PAI COM O MEU FUMO DE LUTO NO JERSEY DA TRISTEZA

Nem a boa ventura
de um adeus-relâmpago
nos poupa à aventura
a caminho do breu

E sem saber o rumo
adivinhando o escuro
cá ficamos a planar
à cata do Destino

Parte o Bonzinho pai
fica o Bonzinho filho
a pensar que nem deu tempo
d'espantar o luto pelo Bento

Não se percebe o senso
da puta desta vida de facadas
pelas costas, pela frente
a voar no céu cheio d'Infernos

The show must go on
e tu bem sabes
que o Bonzinho pai
sabia dessas coisas

Por isso bebe uns valentes copos
e chora se lágrimas tiveres para verter
e esconde-te na toca por uns tempos
mas apenas se tiver mesmo de ser

3/3/2007, 09h55m.


Se quiseres eu cubro a tua alma de açúcar

Se quiseres
eu cubro a tua alma
de açúcar

E se tiveres ainda
falta
de glucose

Deixa-me dar-te
ao fim do dia
um olhar doce


Brisas de fim-de-tarde em Dó Maior

Se os teus olhos
perenes de paz
reflectirem a lua
como lagos

Banhando a tua dor
em pântanos de fogo
que trituram as entranhas
em volúpias

Não confundas a ternura
com meiguice
não iludas um quadro
em desespero

Tu já não queres viver
como quem sonha
tu já não queres sonhar
por não saberes

Essa subtil margem
das saudades
que vai da meiguice
às tuas lágrimas


Pequena Aguarela Draculiana

Dedicada a Bram Stoker
Com paragem em O’Neill
E apeadeiro em Mello e Castro

Esta noite vou dormir comigo
acasulado num caixão
semeado num castelo transilvanês
arrendado por Drácula a láctea virgem doirada

Os meus fantasmas
emigraram com minha ex-mulher
presumo ter vomitado todos num relâmpago
em que o vodka me deu a volta ao fígado

Cortejar uma donzela
é ser corsário dum corpo
é esquartejar na alma
as Caraíbas do mito

Não quero mais
sobro-me em excessos de mim
nas volúpias que ela teceu
em teias de Penélope

Minha Ítaca é agora este caixão
minha música é o ribombar dos lobos sós
a uivar à lua em desgarradas sadias
como quem ganhou Deus ao totoloto

Tinha dentes de fome e crueldade
são como farpas apontadas em alvo às tuas pétalas
disfarçadas de seios com mamilos d'atalaia
em quartos de sentinela cravados no desejo

Por volta da meia-noite
mais morte menos morte
mais jugular menos jugular
mais sangue menos sangue

Por volta da meia-noite
dizia
quando baterem rigorosas doze badaladas em cio
ao soar do gongo nas muralhas da China do meu cérebro

Por volta da meia-noite
ela vai bailar envolta em olheiras de Mirandela
e todos os delfins de Prometeu
vão rodopiar excelsos e sorver o seu suor

Com a língua pendurada nas axilas
vão lamber os sovacos da donzela
cheirar os cabelos que olfactivamente são neutrais
mas revelam ainda restos de Pantene em segunda mão

Esta noite vou dormir comigo
quando o baile findar
por volta do nascer do sol
quando o raio dos raios acordarem com as galinhas

Haverá vampirinhos a adormecer nos túmulos
clautros e criptas alugados a preços de ocasião
dobradiças a ranger mognos que se fecham
vernizes de caixões a estalar

Mas não só, nem por sombras
haverá muito mais e o mais que haverá
ficará dependurado nas janelas como nos estendais
dos filmes de Beatriz Costa e Vasco Santana

Haverá poemas empalados em postes ensebados
mandados vir de propósito
das mais longínquas aldeias de Trás-os-Montes
geminadas com as mais próximas cidades da Roménia

Cluj não é Bucareste
a Serra dos Candeeiros, contudo
tem umas luzinhas que parecem os Cárpatos
quando piscam árvores de Natal a 24

Esta noite vou dormir comigo
a pança cheia de bandulhos ARH+
aquele sabor de hemorragia nasal acidental
aquele muco viscoso da cor do Benfica

Antes de dormir
rezarei orações a Satanás
terei pensamentos piedosos
para Torquemada e seus sequazes

Lá fora a tempestade não amainará
os trovões serão espelhos de nostalgia estereofónica
o céu cortado e recortado em raios e coriscos
coretos e coristas do Parque Mayer

Pode ser que esta noite não durma comigo
acasulado num caixão
semeado num castelo transilvanês
arrendado por Drácula a láctea virgem doirada

Pode ser que os meus fantasmas
não tenham emigrado com minha ex-mulher
ou até que eu nem tenha vomitado todos num relâmpago
por o vodka me ter dado a volta ao fígado

A ser assim
e só Deus e o Demónio sabem como são as coisas
a ser assim
tudo girará à velocidade de um corcel louco por pipocas

E já não dormirei comigo
mas contigo
minha puta em frenesim de luas cheias
minha vaca de Kreutzfeld-Jakobs

É louca a tua carne?
É rouca a tua boca?
É pouca a tua sede?
É tanta a tua fome?

Possui!
Devora!
Chama-me vampiro!
Desflora!

Luís Graça
(Dick Hard)


E DO ESTORIL SOPROU A BRISA FÚNEBRE

Mais um pássaro
a voar
direito ao Céu

Mais um voo
que foi
e já não é

Mais um Porto
que fica
órfão de um cais

Mais um abismo
a queimar
como braseiro

Mais um amigo
a pensar
se vale a pena


Mais uma alma
atracada
no deserto

Assim ficamos
prostrados, ofendidos
incrédulos, tementes

Como quem não sabe
ou finge não saber
a meta à vista

E do Estoril
soprou
a brisa fúnebre

E depois da brisa fúnebre
virá o vento
e depois do vento

Ainda mais vento
sempre mais vento
até ao fim do vento

E a brisa fúnebre
tão fúnebre de fúnebre
que só fúnebre sabe ser

Dissolve-se no Guincho
em gritos de gaivota
e desfaz-se nas ondas

À procura da lágrima certa
para saudar a partida
de quem nos gerou

A dor fica
mas a Paz
há-de chegar

12/1/2006, 22h45m, R.I.P. em memória do pai do Paulo


As tradições constroem-se. Todos os anos, eu e o meu amigo Luís Carlos almoçávamos no restaurante “Hexágono +” a 31 de Dezembro. A 15 de Julho de 2005 o Luís Carlos partiu.
Ficou a saudade. E a vontade de ter sempre algo escrito para ele a 31 de Dezembro.
 
 POEMA DO NOSSO DIA
 
Lá no alto, do teu lugar
tens a paz toda
a dançar borboletas
na brisa dos teus olhos
 
Aqui por baixo, do meu lugar
rói-me o coração
essa coisa portuguesa
chamada saudade
 
Na despedida de mais um ano
sonho que tens todo o sol do mundo
para aquecer as mãos
na lareira da Eternidade
 
Aquele sol todo de Julho
que te banhou na hora do adeus
quando desceste à terra
mergulhado num mar de flores
 
E lágrimas
aquelas lágrimas minhas e tuas
que não fiz esforço
para deixar de chorar


MINETTE, BOSCH E MOTA AMARAL

No atelier de Rodin
Minette Walters (com dois tês)
escrevia o último capítulo
de "A escultora"

No Mosteiro do Hyeronimus
à luz das velas
havia Bosch
É sempre brom!

Tão bom que Mota Amaral
considerou o 69
como um curioso número
em plena Aldeia dos Macacos


NOCTURNO DE CHOPIN
 
Gosto de juntar palavras
no teu corpo
ouvir da tua voz
o sangue em fogo
 
Sentir a tua seiva a borbulhar
uma prece sedenta
em turbilhão
um jacto de magia
 
Beber dum trago voraz
as tuas carnes
depois cozer poemas
por parir
 
Misturar as tuas juras
nos meus dedos
deixar sílabas loucas
nas encostas
 
Depois acordar na alvorada
ver o teu torso nu adormecido
e saber que não foi sexo nem desejo
apenas um nocturno de Chopin


PARA O JAIME

Havia ainda
muito mar
p'ra descobrir

E de repente
um coração bom
disse que não

Quando um coração bom
está de partida
o que fazer?...

Juntar todas as lágrimas
e devolver o sal
ao nascer da noite
Luís Graça
(25/8/2005)


A VISITA DO PÁSSARO MALVADO
                             (ao Luís Carlos)

Um dia
uma sombra
um pássaro
uma ave

Disfarçada de abutre
pendurada do céu
de cabeça para baixo
levou-te para longe

E ficou a noite
a chorar baixinho
triste como breu
só, como um farol

Mas a tua luz
que brilhava ao longe
quando tinhas na mão
o vento da tarde

Acendeu um facho
vestiu-se de lutos
sorriu de mansinho
e depois...silêncios
Luís Graça, 15/7/2005


POEMA PARA O ÚLTIMO VOO
                   (ao Luís Carlos)

Nunca soube
se era azul
o azul dos teus olhos

E sendo azul
se era o azul do céu
ou era o mar

Sempre soube
o oceano inteiro
nos teus olhos

Em lágrimas de sal
e risos de marfim
recheados de pérolas

Nunca soube
se era azul
o azul dos teus olhos

Sempre soube
o teu voo de águia
sobre as águas

O teu corpo como carpa
a saltitar feliz
no meio da corrente

Nunca soube a razão
do teu adeus
a rebentar nas ondas

Olhos nos olhos
eu e tu sabemos
as palavras em falta

Como gotas a escorrer
de mágoas numa caverna
que nos corta a alma

Nunca soube
se era azul
o azul dos teus olhos

O oceano inteiro
do teu voo de gaivota
a beijar a brisa

Nunca soube
se era azul
o azul dos teus olhos

E sempre soube
o teu lugar de pássaro
é no céu
Luís Graça, 15/7/2005


Sémen de Poeta sabe a Arco íris

Há quem derrame prosa como sémen
ignorando a tesão da Literatura
pois a criação é casta como a neve

A esses beijo apenas a inocência
de não saber mais do que o banal
e nunca ejacular mais do que sílabas

São milhões como um exército de larvas
e bebem cálices de orgulho e preconceito
no luar tenebroso das certezas

Sabei, senhores, e digo vos de borla
escrever assim não é raiz do amanhã
é somente parir monstros sem cabeça

Vós padeceis de mal muito antigo
ignorais sem maldade e por desleixo
que Literatura é mais do que punheta

O sémen verdadeiro dos poetas
bebe se às taças como manjar de semi deuses
e frutifica em arco íris de ternura.


COVADONGA, 25 DEZEMBRO, NEBLINAS MATINAIS

A velha cena, para variar, o que tem de ser tem muita força
O Pai Natal bebeu champanhe até cair, na Consoada meiga
Deus ficou na Net até romper o dia a consultar horóscopos
e o Diabo só brincava com o telemóvel da última geração

Logo de manhãzinha, a 25, o Menino Jesus chamou a malta toda
Sem coragem de dizer não ao jovem radical, de capacete em riste
lá montaram contrariados nas “mountain bikes” e arriba até à catedral
onde Pelágio covadongava de atenções os turistas japoneses

O pior foi depois, na subida para os Lagos, com os touros a pastar
grandes, imensos, mas perdidos de mansos e  muito civilizados
entranhando-se nas rochas à passagem dos carros e seguindo viagem
como quem sabe tudo de reservas naturais e dos mistérios da Natureza

Vieram as neblinas matinais, bem perto dos Lagos, no topo asturiano
“Já me sinto mais perto de mim”, disse Deus, cansado e sorridente
enquanto o Diabo se desflorava em sorrisos perante uma explosão azul
de pequenas borboletas a emigrar, inocentes, das relvas para os Ceús

A vida cheirava tanto a verde que doía na alma de felicidades sortidas
mas era mesmo assim que Deus fizera as coisas, por causa das tosses
e até o Diabo não resistiu a beijá-lo nas faces, de coração ao alto
“Parabéns, pá, tenho de dar o rabo a torcer, isto aqui é cinco estrelas”

Ao cair da tarde, desceram todos, numa corrida louca de catraios
a rasgar nevoeiros, o estômago refastelado de bocadillos de queso

e botas de viño, enquanto o Pai Natal, de nariz gelado e gorro na tola
não parava de insistir, malcriadão: “Mas onde é que se janta, porra?”


BACO E DIONISO ATÉ GOSTAM DA PINGA

Quando o sol rasga de odores o fim da tarde
as almas do estertor ecoam melodias
nessas horas perdidas em que o mundo arde
e as andorinhas celtas entoam sinfonias

Aos pares os homens choram de saudade
a juventude perdida em sonhos d'ilusões
e uma donzela passeia a soledade
sem paciência para ouvir dos velhos os sermões

Se na esquina do bairro jorra vinho
bebe Baco, sedento, devora-o em golfadas
Dioniso bebe do verde, lá do belo Minho
tem no fígado e estômago almofadas

Triste par que sorri às bebedeiras
encostados ao barril todos os dias
já nem sabem distinguir das estrumeiras
os perfumes selectos, alquimias

Mas quando corre o tinto do Cartaxo
sorri Baco e chora o Dioniso
amam o vinho por cima e por baixo
dormem na brisa e moram no alíseo


18 HORAS TMC

Eram 6 da tarde quando cheguei ao Céu
uma orquestra de rouxinóis tocava boleros
e Deus estagiava poemas de amor na Mont Blanc

Temperatura agradável, nem frio de traições
nem calor de granadas em estufa de aguardente
o tempo que faz no Céu toda a Eternidade

Deram-me logo uma “Tequilla Sunrise” gelada de sorrisos
e uma coelhinha da Playboy com seios naturais
ofertou-se de mansinho para misturarmos peles

Depois fomos jantar trufas, vinho do Porto e Häagen Dazs
o restaurante era uma ostra acetinada com cheiro de lírios
e um “maître” vestido de anjo e curso de “saucier”

À noite, assistimos à “première” da nova versão da “Bíblia”
num cinema parecido com o castelo da Bela Adormecida
onde os bidões de pipocas sabiam a caviar e “foie-gras”

Gostei de ver Tom Cruise como Abraão, apesar da altura
as barbas compensaram e o moço está outra vez charmoso
não obstante Nicole vender agora o corpo em Hollywood

Trouxeram-me ao quarto num Rolls Royce verde de metais
conheci pessoalmente o saxofone tenor de Stan Getz
que ia deitado nos estofos a tocar “Apasionado”

Tomei um duche daqueles automáticos, novidade celestial
e deixei-me boiar na cama que cheirava a lavado de Ajax
entrou então, nua de pecados, uma massagista tailandesa

E cada vez que me pianava as costas bronzeadas
saíam-me dos poros os últimos demónios escondidos
e sentia-me como um alpinista no topo de mim

Quando acordei, sem remelas, ressacas, remorsos ou memórias
Bogart veio tomar comigo o uísque da manhã, sorriu-me
e disse que no Céu era sempre assim todos os dias

Gulbenkian, 15/7/2002, 18h45m


TOMBSTONE

Há sempre um primeiro verme para nos bicar
o caixão desceu à terra há pouco tempo
há sempre um verme feioso que é mais atrevido
cheira a verme, sabe a verme, é mesmo verme

Estamos quietos, ledos, calmos, dóceis, indefesos
deitados em silêncio, horizontais, a cal no focinho
tal como gostam os vermes atrevidos e feiosos
que avançam nas trevas para nos bicar

Afagam-nos os lábios, o nariz, as orelhinhas
lambem-nos os dedos, petiscam-nos as unhas
afiam os dentinhos e avançam decididos
p'ra mais um lauto banquete da sua vérmica existência

Pensam que tudo lhes será permitido
até saborear o nosso cérebro que gostava de praia
até mexer no nosso sexo que gostava de seios
até puxar os nossos pelos que cresciam viçosos

Só nos resta a dignidade de ser Homens
só nos resta a solução final
abrir a boca em fogo e vomitar:
"Some-te verme, aqui jaz um poeta!"


TODOS TEMOS ALCÁCER-QUIBIR NOS CORAÇÕES


Tive uma namorada
boa na cama e na alma
pequeno canyon sempre aberto aos índios
com caldo verde e chouriço até às tantas

Tinha olhos de lago a beijar a lua
e dois seios meiguinhos com sabor a fruta
um par de atalhos em seda como flamingos
amigos do peito com bom coração

Fugiu-me numa manhã de nevoeiro
apanhei-a nas dunas, bem ao longe
chupando com lábios de névoa
o sexo nebuloso de D. Sebastião


OS POETAS SÃO P'RA DEVORAR À COLHERADA


Os poetas comem-se uns aos outros
na ânsia do martelo de Thor
das vísceras poéticas dos potros
do soneto em dó maior

Os poetas são p'ra devorar à colherada
trincar as palavras com desdém
a poesia não tem hora marcada
não se compra ao quilo ou ao vintém

Trituram-se os versos sem piedade
as estrofes chovem nos rios a sul do norte
um vate é animal de soledade
sempre em busca de si até à morte

Os poetas não são mais que canibais
comem-se a eles e não sobra nada
diluem-se no fervor das bacanais
apagam-se a sonhar co'a boa fada


A ÚLTIMA CEIA

Felizes os que morrem a sonhar
infelizes os convidados
para uma ceia de horror

Este é o bode de Satã
que inventou o pecado
no Mundo

Violou o espírito
dos fracos, oprimidos
órfãos e viúvas

Arrotou a vida
com odor a morte
bisturizou cortes
nas essências

Este é o seu corpo
tomai e ardei
este é o seu sangue
pronto a sorver

Néctar fálico
de falsos amores
jorro em lava fumegante
de prazeres vomitados

Sugai o sexo a Lúcifer
porque Satanás se esvai
todos os dias
em Maldade




Comei agora cérebros ferventes
que polvilham de malícia
o coração de jovens
que nunca foram puros

Dai autógrafos nas hóstias
e disparai lasers com o olhar
na hora de subir
o cálice aos céus

Pois a premência
é a descida aos Infernos
e os altares querem-se
de negro pintados

Este é o bode de Deus
que põe o pecado no Mundo
o sátiro dos bosques
com cheiro putrefacto

Este é o riso atroz
dos dentes podres
na ira galáctica
das estrelas

Desflorai o corpo jovem
de seios tenros
olhos azuis
e cabelos de oiro

Corrompei-o com urgência
fazei rápido
porque esta é
a Última Ceia


BALADA PARA VIOLADOR SEM DÓ MENOR


Ele violava a eito
apalpava o peito
sem o menor respeito

Ele provocava a dor
sem o menor temor
mas sem rancor

Ele fazia corar
depois gritar
e desmaiar

Ele dispunha-se a ter
bastava querer
sem se comover

Ele limitava-se a sorrir
sem o menor carpir
sem pensar no porvir

Era um violador inconsequente
que nada sente
e a si próprio mente

Era um violador sem dó menor
violava de cór
como um grão-mór

Morreu como todos e pumba !
apanharam-no desprevenido
e violaram-lhe a tumba !


FOME DE TRAÇA

Passeio-me nos livros como verme que sou
sei devorar os clássicos por ordem
Já comi Jane Austen, Agustina Bessa-Luís,
Anais Nim, Margarida Rebelo Pinto.

Até já comi as irmãs Brönte
no Alentejo, em cima de um monte
num dia de vendavais
bah! Bacanais...

Já comi a Bíblia, em papel “couché”
já comi o “Drácula” em papel bíblia
já comi os volumes todos do “Tempo perdido”
já comi “O homem sem qualidades”.

Tenho boa boca. Como de tudo.

Já comi os sonetos de Shakespeare
a lírica camoniana
e até duas camónes
que eram de Louisiana

Como de tudo.

“Gargântua e Pantagruel”. Já comi.
Alfredo Saramago. Já provei.
José Saramago: comi e vomitei.
Caiu-me na fraqueza.

Não se deve comer Saramago em jejum.
Já comi “Os miseráveis” com pasta de atum.
Passeio-me nos livros como verme que sou.
Sei devorar os clássicos por ordem.

Como de tudo. Tenho boa boca.

Já comi o “Tubarão” sem ver o filme.
Comi o “Ben-Hur”, o “Quo Vadis” e “A Túnica”.
Comi os 12 Césares duma vez
e pus Suetónio a suar na sauna do Holmes Place.

Tenho apetite pela Literatura.
Um dia destes vou comer as gajas todas à traição
quando estiverem a dormir no “Kamasutra”.


Nenúfar?

Leve e volátil
o teu corpo sobre a água
és um prisma
que reflecte o arco íris

És uma pétala doce
uma fragrância
ditoso cisne
a sorrir face a um íbis

Sabes a pouco
quando o sol
morre à tarde

Sabes a tanto
quando o meu desejo
arde


Como Raios no Deserto em Noites de Luarr

Antes de tocar teu corpo
já me tinhas seduzido
duas vezes

Uma como teu sorriso em fogo
outra
com teu olhar em riste

Quanto entrei em ti
de madrugada
foi apenas um gesto instinto

São assim os casamentos do Destino
como os raios no deserto
em noite de luar