Judith Teixeira
OBRA

 

Outonais

No meu peito alvo, de neve,
as claras pétalas dos teus dedos,
finas e alongadas,
tombaram como rosas desfolhadas
à luz espásmica e fria
deste entardecer...
E o meu corpo sofre,
ébrio de luxúria, um mórbido prazer!

A cor viva dos teus beijos,
meu amor,
prolonga ainda mais o meu tormento,
na trágica dor
deste desvestir loiro e desolado
do Outono...
Repara agora, como o sol morre
num agónico sorrir
doloroso e lento!...
……………………………………………..

Noite... um abismo...
sombras de medo!
Tumultuam mais alto os teus desejos!
Sobe o clamor do meu delírio
e a brasa viva dos teus beijos,
num rúbido segredo,
vai-me abrindo a carne em sulcos de martírio!


Perfis decadentes

Através dos vitrais
ia a luz a espreguiçar-se
em listas faiscantes,
sob as sedas orientais
de cores luxuriantes!

Sons ritmados dolentes,
num sensualismo intenso,
vibram misticismos decadentes
por entre nuvens de incenso.

Longos, esguios, estáticos,
entre as ondas vermelhas do cetim,
dois corpos esculpidos em marfim
soergueram-se nostálgicos,
sonâmbulos e enigmáticos...

Os seus perfis esfingicos,
e cálidos
estremeceram
na ânsia duma beleza pressentida,
dolorosamente pálidos!

Fitaram-se as bocas sensuais!
Os corpos subtilizados,
femininos,
entre mil cintilações
irreais,
enlaçaram-se
nos braços longos e finos!

..............................................

E morderam-se as bocas abrasadas,
em contorções de fúria, ensanguentadas!

..............................................

Foi um beijo doloroso,
a estrebuchar agonias,
nevrótico ansioso,
em estranhas epilepsias!
..............................................

Sedas esgarçadas,
dispersão de sons,
arco-iris de rendas
irisando tons...
..............................................

E ficou no ar
a vibrar
a estertorar,
encandescido,
um grito dolorido.


As tuas mãos

Pálido, extático,
olhavas para mim.
E as tuas mãos raras,
de linhas estilizadas,
poisavam abandonadas
sobre os tons liriais do meu coxim…

Os meus olhos de sonho
ficaram presos tristemente
às tuas mãos!...
- Mãos de doente,
mãos de asceta…
E eu que amo e quero a rubra cor dos sãos,
tombei-me a contemplá-las
numa atitude cismadora e quieta…

Depois aqueles beijos que lhe dei,
unindo-as, ansiosa, à minha boca
torturada e aflita,
tiveram a amargura
suavemente doce
duma dor bendita!

Mãos de renúncia! Mãos de amargor!
… E as tuas lindas mãos, nostálgicas e frias,
tristes cadáveres
de ilusão e dor,
não puderam entender
a febre exaltada
e torturante
que abrasava
as minhas mãos
delicadas,
- as minhas mãos de mulher!


A bailarina vermelha

Ela passa,
a papoila rubra,
esvoaçando graça,
a sorrir...
Original tentação
de estranho sabor:
a sua boca - romã luzente,
a refulgir!...

As mãos pálidas, esguias,
dolorosas soluçando,
vão recortando
em ritmos de beleza
gestos de ave endoidecida...
Preces, blasfémias,
cálidas estesias
passam delirando!...

Mordendo-lhe o seio
túrgido e perfurante,
delira a flama sangrenta
dos rubis...
E a cinta verga, flexuosa,
na luxuria dominante
dos quadris...

Um jeito mais quebrado no andar...

Um pouco mais de sombra no olhar
bistrado de lilás...

E ela passa
entornando dor,
a agonizar beleza!...
Um sonho de volúpia
que logo se desfaz,
em ruivas gargalhadas
dispersas... desgrenhadas!...

Magoam-se os meus sentidos
num cálido rubor...

E nos seus braços endoidecem
as anilhs d'oiro refulgindo
num feérico clamor!...

E ela passa...

Fulva, esguia, incoerente...
Flor de vicio
esvoaçando graça
na noite tempestuosa
do meu olhar!...
Como uma brasa ardente,
e infernal e dolorosa,
... a bailar...

a bailar!...


Volúpia

Era já tarde e tu continuavas
entre os meus braços trémulos, cansados...
E eu, sonolenta, já de olhos fechados,
bebia ainda os beijos que me davas!

Passaram horas!… Nossas bocas flavas,
Muito unidas, em haustos repousados,
Queimavam os meus sonhos macerados,
Como rescaldos de candentes lavas.

Veio a manhã e o sol, feroz, risonho,
entrou na minha alcova adormecida,
quebrando o lírio roxo do meu sonho...

Mas deslumbrou-se... e em rúbidos adejos
Ajoelhou-se... e numa luz vencida,
Sorveu…sorveu o mel dos nossos beijos!


Quando, não Sei…

Há-de chegar o dia
em que a minha tristeza há-de acabar...
Tudo finda,.. renasce e recomeça...
E esta tristeza há-de ter fim!
E então minha alegria
há-de voltar!...

Só tenho medo
que, quando ela regressar
eu esteja tão cansada de viver,
que não chegue a festejar
esta ânsia enorme de vencer!,..

Sim, porque da tristeza sempre fica
um jeito desolado...
Mas não! Eu hei-de ser alegre,
e endoidecer cá dentro
toda a amargura do passado!

Mas não tardes
a realidade
do meu sonho!...
Porque há quem morra de saudade
e dor!
E eu não sei se terei vida
que chegue
se a tua demora
for mais longa, meu amor!


Podes Ter os Amores que Quiseres…

Podes dizer que me não amas,
sim, podes dizê-lo,
e o mundo acreditar,
porque só eu saberei
que mentes!

Eu estou na tua alma
como a flama
que devora sob a cinza
as brasas dormentes...

Não creias no remorso
- o remorso não existe!
O que tu sentes
e o que em ti subsiste,
são o rubor da minha ternura
e a chama do meu amor
que em ti
nunca foram ausentes!...

Não julgues, não, que me esqueceste,
porque mentes a ti mesmo
se o disseres…
Podes ter os amores que quiseres,
que o teu amor por mim,
como uma dor latente e compungida,
há-de acompanhar sempre
a tua e a minha vida!


O meu chinês

Nos olhos de seda
traçados em viés,
tem um ar tão sensual
o meu Chinês…

Vive sobre uma almofada
de cetim bordada,
pintado a cores.

Às vezes
numa ânsia inquieta
que eu não mitigo,
e que me domina,
num sonho de poeta
ou de heroína,
fujo levando
o meu Chinês comigo!

E lá vamos!
Nem eu sei
para que alcovas orientais,
em que países distantes,
realizar
as horas sensuais,
as horas delirantes
com que eu sonhei…
……………………………………………..

Eu e o meu Chinês
temos fugido tanta, tanta vez!


Minha Vida!

Tu estás doente meu amor, porquê?
Falta-te o sol, a luz, o meu sabor?
Ou queres tu, que ainda eu te dê,
nos meus braços, mais ânsia, mais calor?

Se és tu o sol, a graça, essa mercê
divina que Deus trouxe à minha dor,
exige tudo, a minha vida e crê
que ta darei com alegria, amor!

Se perdes a alegria, minha vida,
perco-me eu a procurar a causa:
minha alegria é também perdida!

Beijemo-nos, meu bem, ardentemente…
que venha a morte numa doce pausa
e que nos leve se não és contente!


Adeus

Sim, vou partir.
E não levo saudade
de ninguém…
Nem em ti penso agora!…
Julgavas que a tristeza desta hora
fosse maior que a firme vontade
que eu pus em destruir
o luminoso fio de ternura
que me prendia ao teu olhar?…
Julgaste mal:
Eu sei amar,
mas meu amor,
o que eu não sei
é ser banal!

Mas porque vim eu escrever-te ainda?
Nem eu sei!
Talvez somente
o hábito cortês da despedida
– e o hábito faz lei!

Choro?!… Oh! sim, perdidamente!
Mas sabes tu, porque este pranto
assim amargo, e soluçado vem?
É que na hora da partida
eu nunca pude sem chorar,
dizer adeus a ninguém!

Janeiro
1926


Um Sorriso que Passa?

Saber de ti…
Mas para quê?
O que eu penso é o que vale!
E se não fores como eu te julgo
ou como eu te vi,
que a tua boca não fale!
– O que tu és não me interessa, crê.

Bendigo o teu sorriso,
que veio encher o meu olhar de luz!
Mas para quê saber quem és
ou que destino te conduz?!…

Não sei a cor dos teus cabelos…
conheço a tua boca apenas quando ri…

Não voltes mais!

Que a visão do teu sorriso
– sorriso de curvas ideais,
virá dulcificar
a agonia dos poentes
destes meus dias sem remédio,
longos, incoerentes,
e desiguais!

Inverno
1925


Rosas Pálidas

Ó anémicas! Ó pálidas!
Ausentou-se o sangue
das vossas veias delicadas…
Ó sombras vagas
duma vida exangue!
Ó virgens aladas!…

Nunca pôde encantar-me essa candura
da vossa serena
brancura.
E jamais eu tive
um amplexo de amor
em que no meu peito
se esmagasse
a vossa carne de chorosa Madalena
sem gritos e sem cor…

Ó flébeis, doentias!
– O meu olhar procura a ardência
forte e colorida
das vossas irmãs
rubras e sadias!

A vida é beijada pelo sol
e ungida pela dor!

Deixai que o sol fecunde o vosso seio…
e que o vento vos beije
em convulsões brutais
em convulsões pagãs!
A luxúria, ó pálidas irmãs,
é a maior força da vida!
Sensualizai pois! a vossa carne
arrefecida…
Ó brancas, imaculadas!
Ó virgens inúteis
e decepadas…

Agosto – Sol. Meio dia
1925


Crepúsculo

Lá vem a noite, as serras contornando;
É esta a hora negra dos vencidos!…
Ao longe, o arvoredo baloiçando
toma aspectos bizarros, contorcidos…

Em ladainhas fúnebres, rezando,
descem dos montes já escurecidos,
as aves agoirentas, voejando
sobre os casais, na sombra adormecidos…

Hora em que se erguem maldições atrozes…
e em que os sinos, ao longe, são as vozes
indefinidas de miséria e dor!…

Hora dos neurasténicos, dos tristes…
Hora em que eu sinto bem que ainda existes,
nesta saudade duma dor maior!

Outubro
1922


O Anão da Máscara Verde

As árvores seculares
do meu jardim,
em murmúrios de segredo –
falam de mim,
riscando no horizonte
longas figuras de medo…

O silêncio fala
balançando os esguios esqueletos
das árvores desgrenhadas!
Apagaram se as velas perfumadas
do lampadário da minha sala…
As aves em voos inquietos
passam caladas!
……………………………………
Infinitamente só,
as horas vão adormecendo…
……………………………………
Estranha visão!
Do espelho para mim,
vem deslizando
lívido de luar
um fulvo Anão, de máscara verde
vestido de arlequim…
As mãos a suplicar,
num gesto que se perde…

Nos olhos cintilantes, infernais,
eu leio confissões rudes, brutais!
– Estende os braços revestidos de oiro…
E as suas mãos esguias
vêm desprender o meu cabelo loiro!…

Álgida madrugada de luar…
Infernal tentação!
Eu não posso desfitar…
a boca rubra e incendiada
do meu Anão!

Quero fugir a este inferno!
– Os olhos dele…
Um abismo sem fim!
Um labirinto!…
– E o meu cabelo a arder
nas mãos do arlequim! –
Não! Não!
Foi um desejo apenas
e que eu desminto!
E rasgo lhe com fúria
as vestes de cetim.
……………………………………
Olho ainda o espelho
pálida e cansada…
E já longe,
iluminado de luar
álgido e frio,
o meu Anão de olhar sombrio,
lá está
a contar
o meu segredo
num murmúrio sem fim,
ás árvores do Medo
do meu jardim!


Inverno – Meia Noite
1922


A mulher do vestido encarnado

Ameigam teu corpo airoso
requebros sensuais,
e o teu perfil
felino e vicioso
diz-nos pecados brutais?
– Paixões preversas
onde o crime é gozo!

Carne que a horas se contrata,
e onde a tísica já fez guarida;
– vendida por suja prata
em tanta noite perdida…

Ó farrapo de luxúria
que acendes quentes desejos
até à fúria,
na febre de longos beijos!…

Perderam se tantas, tantas
mocidades
nos teus olhares diabólicos,
que nem tu já sabes quantas!

E ninguém te perguntou
ainda, mulher perdida
que desgraçado amor foi esse
que te arrastou
a essa vida, negra vida!

E às vezes,
cuspindo sangue
em noites de guitarrada,
a tua boca tão mordida,
cantando, à desgarrada,
fala do amor crueldade
– um amor todo ruína,
uma amor todo saudade!

Ó farrapo de luxúria
que acendes quentes desejos
até à fúria,
na febre de longos beijos!

Outubro
1922


Duma Carta

Escrevi-te ontem
somente para dizer
das minhas mágoas e do meu amor…
O Sol morria…
Tudo era sombra em redor
e eu…, ainda escrevia…

A pena sempre a correr
sobre o papel,
deixava cintilações,
nas pedras do meu anel!

E a pena corria…
Nem precisava ver, o que escrevia!

Anoitecera.
…………………………………………
Como eu em toalha de altar
A mesa
revestiu se de luar!?

Nascera a lua.
E a pena, nos bicos leves,
dizia ainda:
– Sou tua!
Por que é que me não escreves?
Mas o papel acabou
e a pena continuou:
Por que é que me não escreves?
O meu amor é todo teu.
Só eu te sei amar!
– Só eu!…

Janeiro
1922


O Meu Destino

Vivo de inquietações…
De sombrios desejos…
As minhas ambições,
andam traduzidas
nos rúbidos lampejos,
dos meus olhos em fogo!

Não cedem à agonia do meu rogo…
Andam fugindo ao meu destino.
Nem sentem os meus nervos estalar!
E os meus braços desgarrados
procuram em desatino –
sem nada encontrar!

Rasgo nas mãos doloridas,
escorrendo de luar,
as sombras espavoridas
que me ensombram o olhar!

Anda a loucura a desgrenhar-me –
o corpo e o pensamento…
As minhas horas, vão escurecendo
no destrambelho dos meus cuidados…
E eu vou andando
vagarosamente
os olhos roxos de sombra,
amargurados
demandando
tristemente,
o caminho,
do negro labirinto,
onde se perdem
os alucinados!

Julho – Sol Posto
1922


Por Quê?

Que tens dentro de ti
estranho obreiro?
Que silêncio angustioso
traduzem
os teus Crepúsculos doentes
– Bizarro caminheiro
do infortúnio!
Onde foste ouvir a dor
dos teus Poentes?

Que rumor imenso,
que tragédia contas
em cada cor?
Que grãos de incenso,
queimas tu, em cada Alvor?

Ó romeiro da desgraça!
Predestinado sonhador
de noites sem estrelas!
Trágico e errante…
Porque pintas tu sempre, um Céu distante,
nas mortificadas cores
das tuas telas?

Julho – Céu nublado
1922


Insónias

A noite vai adiantada
na penumbra do meu boudoir…
Sobre o meu coxim
de seda encarnada,
pobre de mim!
não posso descansar!

Revolvem-se em convulsões
sombras escuras!
São almas, são corações,
são desventuras!

Oiço chorar…
Escalda me a cabeça!
Lá fora o vento não cessa
de ulular…
Que intraduzível anseio!
Busco, procuro, tacteio…
Nada! Nada!

A seda desmaiada!
O meu vestido…
E o vento a uivar!
Outro gemido…
E eu a procurar,
a procurar…

Olho em redor…
– É junto a mim,
é sobre o meu coxim
que geme a dor!

Despedaçam se ilusões
dolorosamente!
Rasgo o cetim que me veste,
em convulsões,
perdidamente!

E o vento sempre a uivar…
Outro grito espavorido!
Sinto latejar a Dor…
É dentro do meu vestido!
Foi aqui que a Dor gemeu…
É no meu ser, dentro de mim.
– Sou eu! Sou eu!

Inverno – O vento bate com fúria nas janelas
1921