Joaquim Pessoa
OBRA
 

Perguntas

Onde estavas tu quando fiz vinte anos
e tinha uma boca de anjo pálido?
Em que sítio estavas quando o Che foi estampado
nas camisolas das teen-agers de todos os estados da América?
Em que covil ou gruta esconderam as suas armas
para com elas fazer posters cinzentos e emblemas?
Onde te encontravas quando lançaram mão a isto?
E atrás de quê te ocultavas quando
mataram Luther King para justificar sei lá que agressões
ao mesmo tempo que víamos Música no Coração
mastigando chiclets numa matinée do cinema Condes?
Por onde andavas que não viste os corações brancos
retalhados na Coreia e no Vietname
nem ouviste nenhuma das canções do Bob Dylan
virando também as costas quando arrasaram Wiriamu e
enterraram vivas
mulheres e crianças em
nome de uma pátria una e indivisível?
Que caminho escolheram os teus passos no momento em que
foram enforcados os guerrilheiros negros da África do Sul
ou Allende terminou o seu último discurso?
Ainda estavas presente quando Victor Jara
pronunciou as últimas palavras?
E nem uma vez por acaso assististe
às chacinas do Esquadrão da Morte?
Fugiste de Dachau e Estalinegrado?
Não puseste os pés em Auschwitz?
Que diabo andaste a fazer o tempo todo
Que ninguém te encontrou em lugar algum?


De bruços

De bruços me debruço mais ainda até sentir os olhos tumefactos para saber até que ponto é linda
a intrigante cor desses sapatos
que às tuas pernas dão um brilho tal
e uma leveza tal ao teu andar,
que eu penso (embora aches anormal) que nunca te devias descalçar.
Também porquê, se já não há verdura nem tu és Leonor para correr
descalça, no poema, à aventura?
O mais difícil, hoje, é antever
quem é que vai à fonte em literatura e que água dá aos versos a beber.

SONETO PRIMEIRO

Não foi Guevarra, mãe, quem te rasgou
Com os punhais do frio pela manhã.
Foi quando eu te feri que um cão ladrou.
Das rosas veio um cheiro a hortelã!
Nos mastros adejavam as gaivotas.
Era Fevereiro. E a noite um pesadelo.
Da chuva que caía algumas gotas
Quiseram repousar no teu cabelo.
E eu nasci. No quarto ninguém estava.
À porta só a chuva é que teimava
Em molhar os lençóis da tua cama.
Não foi Guevarra, mãe, quem tu pariste
Foi um grito do povo azul e triste
Na noite em que chorei luas de lama.


A ROSA

Estou aqui estou aqui não pretendi fugir nunca
o meu peito é sólido
o meu nome é sólido
o meu céu é sólido
o meu ar é sólido
as minhas dúvidas são sólidas

Acabei de jantar no Restaurante Chinês e olhei para as minhas mãos

estão inquietas como ontem
tremem como ontem
e ontem foi tudo
inquieto e trémulo como as minhas mãos

Não há nenhuma flor que resista à beleza da poesia de Paul Éluard
não é meu filho? repetia aquela mãe que eu nunca tive
e eu afirmava afirmava sempre
que nada neste mundo tem a força de uma rosa

oh a minha mãe era bela
todas as mães são belas
e eu só posso chamar lhes meu amor

Quando a minha mãe morreu a cidade não tinha sombras
em Abril tinha recomeçado tudo
até as próprias sombras
e eu vesti me de branco para dar o último beijo a minha mãe
no dia em que me senti pela primeira vez um homem
porque ao ficar de novo órfão
disse: É preciso ler Paul Éluard! e não
lhe dei simplesmente a minha rosa


FACE A FACE

Entendamo nos:
falar de ti e dos teus olhos de garça enevoados
seria talvez tão vulgar como enumerar as coisas simples e nisso
não há qualquer desafio
Existe apenas uma razão íntima como a de quem
não gosta de se repetir ou de estar de costas voltadas para o mar
amando o imprevisto como um sinal de alarme

Também falar de mim poderia tornar se perigoso
se me virasse para dentro habitando a minha memória e não
a memória de todos os meus dias habitando a minha memória e não
A memória de todos os meus dias: Fariseu único
de um Templo de Escadas Rolantes
quando vejo mudar a água em sangue
e arregaçar as mangas para transformar uma seara em pão
não deixando ao diabo esse trabalho de
mostrar que a realidade não é o que é
mas sempre o outro lado da indiferença

E bato as esquinas levando a pederneira
com que se acendem os poemas que alimentam as primeiras esperanças
atravessando nas passagens de peões com a precaução da caça perseguida
e a preocupação de me dar
desinventando mágoas repartindo alegrias
como quem escreve um tratado de amizade
num país de vidro onde a dor está mais escondida
que os ovos da codorniz no coraçção da erva