Álvaro de Campos
OBRA
 


Ver a BIOGRAFIA



Poema em linha recta

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cómico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.
Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos, Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo? Entáo sou só eu que é vil e erróneo
nesta terra?
Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridÌculos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.




    1. O que há em mim é sobretudo cansaço
  • O que há em mim é sobretudo cansaço
    Não disto ou daquilo,
    Nem sequer de tudo ou de nada:
    Cansaço assim mesmo, ele mesmo,
    Cansaço.

    A subtileza das sensações inúteis,
    As paixões violentas por coisa nenhuma,
    Os amores intensos por o suposto alguém.
    Essas coisas todas -
    Essas e o que faz falta nelas eternamente -;
    Tudo isso faz um cansaço,
    Este cansaço,
    Cansaço.

    Há sem dúvida quem ame o infinito,
    Há sem dúvida quem deseje o impossível,
    Há sem dúvida quem não queira nada -
    Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles:
    Porque eu amo infinitamente o finito,
    Porque eu desejo impossivelmente o possível,
    Porque eu quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser,
    Ou até se não puder ser...

    E o resultado?
    Para eles a vida vivida ou sonhada,
    Para eles o sonho sonhado ou vivido,
    Para eles a média entre tudo e nada, isto é, isto...
    Para mim só um grande, um profundo,
    E, ah com que felicidade infecundo, cansaço,
    Um supremíssimo cansaço.
    Íssimo, íssimo. íssimo,
    Cansaço...


    Dá-me lírios

    Dá-me lírios, lírios,
    E rosas também.
    Mas se não tens lírios
    Nem rosas a dar-me,
    Tem vontade ao menos
    De me dar os lírios
    E também as rosas.
    Basta-me a vomtade,
    Que tens, se a tiveres,
    De me dar os lírios
    E as rosas também,
    E terei os lírios -
    Os melhores lírios -
    E as melhores rosas
    Sem receber nada,
    a não ser a prenda
    Da rua vontade
    De me dares lírios
    E rosas também.


    Lisbon revisited

    Não: não quero nada.
    Já disse que não quero nada.
    Não me venham com conclusões!
    A única conclusão é morrer.
    Não me tragam estéticas!
    Não me falem em moral!
    Tirem-me daqui a metafísica!
    Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas
    Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!)
    Das ciências, das artes, da civilização moderna!
    Que mal fiz eu aos deuses todos?
    Se têm a verdade, guardem-na!
    Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica.
    Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo.
    Com todo o direito a sê-lo, ouviram?
    Não me macem, por amor de Deus!
    Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?
    Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa?
    Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.
    Assim, como sou, tenham paciência!
    Vão para o diabo sem mim,
    Ou deixem-me ir sozinho para o diabo!
    Para que havemos de ir juntos?
    Não me peguem no braço!
    Não gosto que me peguem no braço. Quero ser sozinho,
    Já disse que sou sozinho!
    Ah, que maçada quererem que eu seja de companhia!

    Ó céu azul- o mesmo da minha infância -,
    Eterna verdade vazia e perfeita!
    Ó macio Tejo ancestral e mudo,
    Pequena verdade onde o céu se reflecte!
    Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!
    Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.
    Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo ...
    E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho!


    Ao volante do Chevrolet pela estrada de Sintra

    Ao volante do Chevrolet pela estrada de Sintra,
    Ao luar o ao sonho, na estrada deserta,
    Sozinho guio, guio quase devagar, e um pouco
    Me parece, ou me forço um pouco para que me pareça,
    Que sigo por outra estrada, por outro sonho, por outro mundo,
    Que sigo sem haver Lisboa deixada ou Sintra a que ir ter,
    Que sigo, e que mais haverá em seguir senão não parar mas
    seguir?
    Vou passar a noite a Sintra por não poder passá-la em Lisboa,
    Mas, quando chegar a Sintra, terei pena de não ter ficado em Lisboa.
    Sempre esta inquietação sem propósito, sem nexo, sem
    consequência,
    Sempre, sempre, sempre,
    Esta angústia excessiva do espírito por coisa nenhuma,
    Na estrada de Sintra, ou na estrada do sonho, ou na estrada da vida ...
    Maleável aos meus movimentos subconscientes do volante,
    Galga sob mim comigo o automóvel que me emprestaram.
    Sorrio do símbolo, ao pensar nele, e ao virar à direita.
    Em quantas coisas que me emprestaram eu sigo no mundo!
    Quantas coisas que me emprestaram guio como minhas!
    Quanto que me emprestaram, ai de mim!, eu próprio sou!
    À esquerda o casebre - sim, o casebre - à beira da estrada. À direita o campo aberto, com a lua ao longe.
    O automóvel, que parecia há pouco dar-me liberdade,
    É agora uma coisa onde estou fechado,
    Que só posso conduzir se nele estiver fechado,
    Que só domino se me incluir nele, se ele me incluir a mim.

    À esquerda lá para trás o casebre modesto, mais que modesto.
    A vida ali deve ser feliz, só porque não é a minha.
    Se alguém me viu da janela do casebre, sonhará: Aquele é que é feliz.
    Talvez à criança espreitando pelos vidros da janela do andar que está em cima.
    Fiquei (com o automóvel emprestado) como um sonho, uma fada real.
    Talvez à rapariga que olhou, ouvindo o motor, pela janela da
    cozinha
    No pavimento térreo,
    Sou qualquer coisa do príncipe de todo o coração de rapariga,
    E ela me olhará de esguelha, pelos vidros, até à curva em que
    me perdi.
    Deixarei sonhos atrás de mim, ou é o automóvel que os deixa?
    Eu, guiador do automóvel emprestado, ou o automóvel
    emprestado que eu guio?
    Na estrada de Sintra ao luar, na tristeza, ante os campos e a noite,
    Guiando o Chevrolet emprestado desconsoladamente,
    Perco-me na estrada futura, sumo-me na distância que alcanço,
    E, num desejo terrível, súbito, violento, inconcebível,
    Acelero ...
    Mas o meu coração ficou no monte de pedras, de que me desviei ao vê-lo sem vê-lo,
    À porta do casebre,
    O meu coração vazio,
    O meu coração insatisfeito,
    O meu coração mais humano do que eu, mais exacto que a vida.
    Na estrada de Sintra, perto da meia-noite, ao luar, ao volante,
    Na estrada de Sintra, que cansaço da própria imaginação,
    Na estrada de Sintra, cada vez mais perto de Sintra,
    Na estrada de Sintra, cada vez menos perto de mim ...


    TABACARIA

    Não sou nada.
    Nunca serei nada.
    Não posso querer ser nada.
    À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
    Janelas do meu quarto,
    Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém
    sabe quem é
    (E se soubessem quem é, o que saberiam?),
    Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por
    gente,
    Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
    Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
    Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
    Com a morte a pôr humidade nas paredes e cabelos brancos
    nos homens,
    Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de
    nada.
    Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
    Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
    E não tivesse mais irmandade com as coisas
    Senão uma despedida, tomando-se esta casa e este lado
    da rua
    A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida
    apitada
    De dentro da minha cabeça,
    E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos
    na ida.
    Estou hoje perplexo como quem pensou e achou e esqueceu.
    Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
    À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
    E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

    Falhei em tudo.
    Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
    A aprendizagem que me deram,
    Desci dela pela janela das traseiras da casa,
    Fui até ao campo com grandes propósitos.
    Mas lá encontrei só ervas e árvores,
    E quando havia gente era igual à outra.
    Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei-de
    pensar?
    Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
    Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa!
    E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode
    haver tantos!
    Génio? Neste momento
    Cem mil cérebros se concebem em sonho génios como eu,
    E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
    Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
    Não, não creio em mim.
    Em todos os manicómios há doidos malucos com tantas
    certezas!
    Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos
    certo?
    Não, nem em mim ...
    Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
    Não estão nesta hora génios-para-si-mesmos sonhando?
    Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
    Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
    E quem sabe se realizáveis,
    Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
    O mundo é para quem nasce para o conquistar
    E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que
    tenha razão.
    Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
    Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que
    Cristo,
    Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.

    Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
    Ainda que não more nela;
    Serei sempre o que não nasceu para isso;

    Serei sempre só o que tinha qualidades;
    Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de
    uma parede sem porta,
    E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
    E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
    Crer em mim? Não, nem em nada.
    Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
    O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
    E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
    Escravos cardíacos das estrelas,
    Conquistámos todo o mundo antes de !los levantar da cama;
    Mas acordamos e ele é opaco,
    Levantamo-nos e ele é alheio,
    Saímos de casa e ele é a terra inteira,
    Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.
    (Come chocolates, pequena;
    Come chocolates!
    Olha que não há mais metafisica no mundo senão chocolates.
    Olha que as religiões todas não ensinam mais do que
    a confeitaria.
    Come, pequena suja, come!
    Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que
    comes!
    Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de
    estanho,
    Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)

    Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
    A caligrafia rápida destes versos,
    Pórtico partido para o Impossível.
    Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem
    lágrimas,
    Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
    A roupa suja que sou, sem rol, pra o decurso das coisas,
    E fico em casa sem camisa.
    (Tu, que consolas, que não existes e por isso consolas,
    Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
    Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
    Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
    Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
    Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
    Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -,
    Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que
    inspire!
    Meu coração é um balde despejado.
    Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
    A mim mesmo e não encontro nada.
    Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
    Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
    Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
    Vejo os cães que também existem,
    E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
    E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)
    Vivi, estudei, amei, e até cri,
    E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
    Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
    E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses
    nem cresses
    (Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer
    nada disso);
    Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem
    cortam o rabo
    E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente.

    Fiz de mim o que não soube,
    E o que podia fazer de mim não o fiz.
    O dominó que vesti era errado.
    Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti,
    e perdi-me.
    Quando quis tirar a máscara,
    Estava pegada à cara.
    Quando a tirei e me vi ao espelho,
    Já tinha envelhecido.
    Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha
    tirado.
    Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
    Como um cão tolerado pela gerência
    Por ser inofensivo
    E vou escrever esta história para provar que sou sublime.
    Essência musical dos meus versos inúteis,
    Quem me dera encontrar-te como coisa que eu fizesse,
    E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
    Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
    Como um tapete em que um bêbado tropeça
    Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.
    Mas o dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
    Olhou-o com o desconforto da cabeça mal voltada
    E com o desconforto da alma mal-entendendo.
    Ele morrerá e eu morrerei.
    Ele deixará a tabuleta, e eu deixarei versos.
    A certa altura morrerá a tabuleta também, e os versos
    também.
    Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
    E a língua em que foram escritos os versos.
    Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.

    Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como
    gente
    Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo
    de coisas como tabuletas,
    Sempre uma coisa defronte da outra,
    Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
    Sempre o impossível tão estúpido como o real,
    Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de
    mistério da superfície,
    Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem
    outra.
    Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?),
    E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
    Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
    E vou tencionar escrever estes versos em que digo
    o contrário.
    Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
    E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
    Sigo o fumo como uma rota própria,
    E gozo, num momento sensitivo e competente,
    A libertação de todas as especulações
    E a consciência de que a metafísica é uma consequência
    de estar mal disposto.
    Depois deito-me para trás na cadeira
    E continuo fumando.
    Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.
    (Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
    Talvez fosse feliz.)
    Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.

    O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira
    das calças?).
    Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafisica.
    (O dono da Tabacaria chegou à porta.)
    Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
    Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
    Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o dono
    da Tabacaria sorriu.

  • Cruzou por mim, veio ter comigo, numa Rua da Baixa
    Aquele homem mal vestido, pedinte por profissão que se lhe vê na cara,
    Que simpatiza comigo e eu simpatizo com ele;
    E reciprocamente, num gesto largo, transbordante, dei-lhe tudo quanto tinha
    (Excepto, naturalmente, o que estava na algibeira onde trago mais dinheiro:
    Não sou parvo nem romancista russo, aplicado,
    E romantismo, sim, mas devagar...),

    Sinto uma simpatia por essa gente toda,
    Sobretudo quando não merece simpatia.
    Sim, eu sou também vadio e pedinte,
    E sou-o também por minha culpa.
    Ser vadio e pedinte não é ser vadio e pedinte:
    É estar ao lado da escala social,
    É não ser adaptável às normas da vida,
    Às normas reais ou sentimentais da vida —
    Não ser Juiz do Supremo, empregado certo, prostituta,
    Não ser pobre a valer, operário explorado,
    Não ser doente de uma doença incurável,
    Não ser sedento da justiça, ou capitão de cavalaria,
    Não ser, enfim, aquelas pessoas sociais dos novelistas
    Que se fartam de letras porque têm razão para chorar lágrimas,
    E se revoltam contra a vida social porque têm razão para isso supor.

    Não: tudo menos ter razão!
    Tudo menos importar-me com a Humanidade!
    Tudo menos ceder ao humanitarismo!
    De que serve uma sensação se há uma razão exterior para ela?

    Sim, ser vadio e pedinte, como eu sou,
    Não é ser vadio e pedinte, o que é corrente:
    É ser isolado na alma, e isso é que é ser vadio,
    É ter que pedir aos dias que passem, e nos deixem, e isso é que é ser pedinte.

    Tudo o mais é estúpido como um Dostoiévski ou um Gorki.
    Tudo o mais é ter fome ou não ter o que vestir.
    E, mesmo que isso aconteça, isso acontece a tanta gente
    Que nem vale a pena ter pena da gente a quem isso acontece.

    Sou vadio e pedinte a valer, isto é, no sentido translato,
    E estou-me rebolando numa grande caridade por mim.

    Coitado do Álvaro de Campos!
    Tão isolado na vida! Tão deprimido nas sensações!
    Coitado dele, enfiado na poltrona da sua melancolia!
    Coitado dele, que com lágrimas (autênticas) nos olhos,
    Deu hoje, num gesto largo, liberal e moscovita,
    Tudo quanto tinha, na algibeira em que tinha pouco, àquele
    Pobre que não era pobre, que tinha olhos tristes por profissão.

    Coitado do Álvaro de Campos, com quem ninguém se importa!
    Coitado dele que tem tanta pena de si mesmo!

    E, sim, coitado dele!
    Mais coitado dele que de muitos que são vadios e vadiam,
    Que são pedintes e pedem,
    Porque a alma humana é um abismo.

    Eu é que sei. Coitado dele!
    Que bom poder-me revoltar num comício dentro da minha alma!
    Mas até nem parvo sou!
    Nem tenho a defesa de poder ter opiniões sociais.
    Não tenho, mesmo, defesa nenhuma: sou lúcido.

    Não me queiram converter a convicção: sou lúcido.

    Já disse: sou lúcido.
    Nada de estéticas com coração: sou lúcido.
    Merda! Sou lúcido.


    “Na Última Página de uma Antologia Nova”

    Tantos bons poetas!
    Tantos bons poemas!
    São realmente bons e bons,
    Com tanta concorrência não fica ninguém,
    Ou ficam ao acaso, numa lotaria da posteridade,
    Obtendo lugares por capricho do Empresário...
    Tantos bons poetas!
    Para que escrevo eu versos?
    Quando os escrevo parecem me
    O que a minha emoção, com que os escrevi, me parece –
    A única coisa grande no mundo...
    Enche o universo de frio o pavor de mim.
    Depois, escritos, visíveis, legíveis...
    Ora... E nesta antologia de poetas menores?
    Tantos bons poetas!
    O que é o génio, afinal, ou como é que se distingue
    O génio, e os bons poemas dos bons poetas?
    Sei lá se realmente se distingue...
    O melhor é dormir...
    Fecho a antologia mais cansado do que o mundo –
    Sou vulgar?...
    Há tantos bons poetas!
    Santo Deus! ......


    Agora que estou quase na morte e vejo tudo já claro,
    Grande Libertador, volto submisso a ti.

    Sem dúvida teve um fim a minha personalidade.
    Sem dúvida porque se exprimiu, quis dizer qualquer coisas
    Mas hoje, olhando pra trás, só uma ânsia me fica –
    Não ter tido a tua calma superior a ti próprio,
    A tua libertação constelada de Noite Infinita.

    Não tive talvez missão alguma na terra,


    "Faróis"

    Faróis distantes,
    De luz subitamente tão acesa,
    De noite e ausência tão rapidamente volvida,
    Na noite, no convés, que consequências aflitas!
    Mágoa última dos despedidos,
    Ficção de pensar...
    Faróis distantes...
    Incerteza da vida...
    Voltou crescendo a luz acesa avançadamente,
    No acaso do olhar perdido...

    Faróis distantes...
    A vida de nada serve...
    Pensar na vida de nada serve...
    Pensar de pensar na vida de nada serve...

    Vamos para longe e a luz que vem grande vem menos grande.
    Faróis distantes...


    Aniversário

    No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
    Eu era feliz e ninguém estava morto.
    Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
    E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.

    No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
    Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
    De ser inteligente para entre a família,
    E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
    Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
    Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.

    Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,
    O que fui de coração e parentesco.
    O que fui de serões de meia-província,
    O que fui de amarem-me e eu ser menino,
    O que fui — ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
    A que distância!...
    (Nem o acho...)
    O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!

    O que eu sou hoje é como a umidade no corredor do fim da casa,
    Pondo grelado nas paredes...
    O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),
    O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
    É terem morrido todos,
    É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...

    No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...
    Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
    Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
    Por uma viagem metafísica e carnal,
    Com uma dualidade de eu para mim...
    Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!

    Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...
    A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,
    O aparador com muitas coisas — doces, frutas o resto na sombra debaixo do alçado —,
    As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,
    No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...

    Pára, meu coração!
    Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
    Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
    Hoje já não faço anos.
    Duro.
    Somam-se-me dias.
    Serei velho quando o for.
    Mais nada.
    Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!...

    O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...


    A CASA BRANCA NAU PRETA

    Estou reclinado na poltrona, é tarde, o Verão apagou se...
    Nem sonho, nem cismo, um torpor alastra em meu cérebro...
    Não existe manhã para o meu torpor nesta hora...
    Ontem foi um mau sonho que alguém teve por mim...
    Há uma interrupção lateral na minha consciência...
    Continuam encostadas as portas da janela desta tarde
    Apesar de as janelas estarem abertas de par em par...
    Sigo sem atenção as minhas sensações sem nexo,
    E a personalidade que tenho está entre o corpo e a alma...
    Quem dera que houvesse
    Um terceiro estado p'ra alma, se ela tiver só dois...
    Um quarto estado p'ra alma, se são três os que ela tem...
    A impossibilidade de tudo quanto eu nem chego a sonhar
    Dói me por detrás das costas da minha consciência de sentir...
    As naus seguiram,
    Seguiram viagem não sei em que dia escondido,
    E a rota que devem seguir estava escrita nos ritmos,
    Os ritmos perdidos das canções mortas do marinheiro de sonho...
    Árvores paradas da quinta, vistas através da janela,
    Árvores estranhas a mim a um ponto inconcebível à consciência de as estar
    vendo,
    Árvores iguais todas a não serem mais que eu vê las,
    Não poder eu fazer qualquer coisa género haver árvores que deixasse de doer,
    Não poder eu coexistir para o lado de lá com estar vos vendo do lado de cá.
    E poder levantar me desta poltrona deixando os sonhos no chão...
    Que sonhos? ... Eu não sei se sonhei ... Que naus partiram, para onde?
    Tive essa impressão sem nexo porque no quadro fronteira
    Naus partem naus não, barcos, mas as naus estão em mim,
    E é sempre melhor o impreciso que embala do que o certo que basta,
    Porque o que basta acaba onde basta, e onde acaba não basta,
    E nada que se pareça com isto devia ser o sentido da vida...
    Quem pôs as formas das árvores dentro da existência das árvores?
    Quem deu frondoso a arvoredos, e me deixou por verdecer?
    Onde tenho o meu pensamento que me dói estar sem ele,
    Sentir sem auxílio de poder para quando quiser, e o mar alto
    E a última viagem, sempre para lá, das naus a subir...
    Não há, substância de pensamento na matéria de alma com que penso ...
    Há só janelas abertas de par em par encostadas por causa do calor que já não
    faz,
    E o quintal cheio de luz sem luz agora ainda agora, e eu.
    Na vidraça aberta, fronteira ao ângulo com que o meu olhar a colhe
    A casa branca distante onde mora... Fecho o olhar...
    E os meus olhos fitos na casa branca sem a ver
    São outros olhos vendo sem estar fitos nela a nau que se afasta.
    E eu, parado, mole, adormecido,
    Tenho o mar embalando me e sofro...
    Aos próprios palácios distantes a nau que penso não leva.
    As escadas dando sobre o mar inatingível ela não alberga.
    Aos jardins maravilhosos nas ilhas inexplícitas não deixa.
    Tudo perde o sentido com que o abrigo em meu pórtico
    E o mar entra por os meus olhos o pórtico cessando.
    Caia a noite, não caia a noite, que importa a candeia
    Por acender nas casas que não vejo na encosta e eu lá?
    Húmida sombra nos sons do tanque nocturna sem lua, as rãs rangem,
    Coaxar tarde no vale, porque tudo é vale onde o som dói.
    Milagre do aparecimento da Senhora das Angústias aos loucos,
    Maravilha do enegrecimento do punhal tirado para os actos,
    Os olhos fechados, a cabeça pendida contra a coluna certa,
    E o mundo para além dos vitrais paisagem sem ruínas...
    A casa branca nau preta...
    Felicidade na Austrália..