Almeida Garrett
OBRA
 

As minhas asas

Eu tinha umas asas brancas,
Asas que um anjo me deu,
Que, em me eu cansando da terra,
Batia,as, voava ao céu.
- Eram brancas, brancas, brancas,
Como as do anjo que mas deu:
Eu inocente como elas,
Por isso voava ao céu.
Veio a cobiça da terra,
Vinha para me tentar;
Por seus montes de tesouros
Minhas asas não quis dar.
- Veio a ambição, co'as as grandezas,
Vinham para mas cortar,
Davam,me poder e glória;
Por nenhum preço as quis dar.
Porque as minhas asas brancas,
Asas que um anjo me deu,
Em me eu cansando da terra
Batia,as, voava ao céu.
Mas uma noite sem lua
Que eu contemplava as estrelas,
E já suspenso da terra,
Ia voar para elas,
- Deixei descair os olhos
Do céu alto e das estrelas ...
Vi, entre a névoa da terra,
Outra luz mais bela que elas.
E as minhas asas brancas,
Asas que um anjo me deu,
Para a terra me pesavam,
Já não se erguiam ao céu.

Cegou,me essa luz funesta
De enfeitiçados amores ...
Fatal amor, negra hora
Foi aquela hora de dores!
- Tudo perdi nessa hora
Que provei nos seus amores
O doce fel do deleite,
O acre prazer das dores.
E as minhas asas brancas,
Asas que um anjo me deu,
Pena a pena, me caíram ...
Nunca mais voei ao céu.


BARCA BELA

Pescador da barca bela,
Onde vais pescar com ela,
Que é tão bela,
Oh pescador?

Não vês que a última estrela
No céu nublado se vela?
Colhe a vela,
Oh pescador!

Deita o lanço com cautela,
Que a sereia canta bela...
Mas cautela,
Oh pescador!

Não se enrede a rede nela,
Que perdido é remo e vela
Só de vê la,
Oh pescador.

Pescador da barca bela,
Inda é tempo, foge dela,
Foge dela
Oh pescador!


NÃO ÉS TU

Era assim tímido esse olhar,
A mesma graça, o mesmo ar;
Corava da mesma cor,
Aquela visão que eu vi
Quando eu sonhava de amor,
Quando em sonhos me perdi.

Toda assim; o porte altivo,
O semblante pensativo,
E uma suave tristeza
Que por toda ela descia
Como um véu que lhe envolvia,
Que lhe adoçava a beleza.

Era assim; e seu falar,
Ingénuo e quase vulgar,
Tinha o poder da razão
Que penetra, não seduz;
Não era fogo, era luz
Que mandava ao coração.

Nos olhos tinha esse lume,
No seio o mesmo perfume,
Um cheiro a rosas celestes,
Rosas brancas, puras, finas,
Viçosas como boninas,
Singelas sem ser agrestes.

Mas não és tu... ai! não és:
Toda a ilusão se desfez.
Não és aquela que eu vi,
Não és a mesma visão,
Que essa tinha coração,
Tinha, que eu bem lho senti.


MAGRIÇO E OS DOZE DE INGLATERRA
(Fragmento)

Eu no entrar da singela juventude,
Sem conhecer os homens, fui sincero.
Ardente coração, paixões fogosas,
Alma franca, de impulso me levaram
Aos países do cego entusiasmo.
Por lá cantei de amor pureza e mimos,
Doçuras de amizade, enlevos de alma.
Heroísmo, glória, liberdade e amores,
À porfia na lira me soaram;
E na alteza do espírito sublime
Só vi nos homens a verdade e a honra.
Experiência fatal; tu me roubaste
A tão doce ilusão, em que eu vivia!
Bordado véu de lisonjeiro engano
Rasgou mo de ante os olhos embaídos
Coa descarnada mão seca verdade.
Tal como ele é vi o homem! Aos meus olhos
De vergonha e de dó vieram lágrimas.
Chorei; – tão louco fui! Só gargalhadas
As loucuras do mundo nos merecem.

E assim foi que, atentando mais de perto,
Vi tanta asneira, vi tanta sandice,
Que desatei a rir, por fim, de tudo,
De Heraclito chorão deixei a escola,
E alegre sigo o pachorrão Demócrito.
Quero rir com Diógenes, com ele
No cínico tonel entrincheirar me
Contra as sandices deste parvo mundo.


Eu disse a Deus:

Eu disse a Deus: – Que importa,
Senhor, à tua glória
que sobre mim se feche a eterna porta
do túmulo, e não tique mais memória
deste verme de um dia na terra que o sumia?

Não foi teu braço forte
que do seio do nada
tirou a vida, e mandou logo a morte
para trazer eterno equilibrado
entre o ser e o não ser
nossa força e poder?

Escrito nas estrelas,
clamado pelos ventos,
bradado pelos mares nas procelas
no céu, na terra, em imortais acentos
Por toda parte está
o nome de Jeová.

Na imensa natureza
a voz do homem é nada.