Affonso Romano de Sant’Anna
OBRA
 

É tão natural

É tão natural
que eu te possua
é tão natural que tu me tenhas,
que eu não me compreendo
um tempo houvesse
em que eu não te possuísse
ou possa haver um outro
em que eu não te tomaria.
Venhas como venhas,
é tão natural que a vida
em nossos corpos se conflua,
que eu já não me consinto
que de mim tu te abstenhas
ou que meu corpo te recuse
venhas quando venhas.
E de ser tão natural
que eu me extasie
ao contemplar-te,
e de ser tão natural
que eu te possua,
em mim já não há como extasiar-me
tanto a minha forma
se integrou na forma tua.


A implosão da mentira

(Fragmento 1)
Mentiram-me. Mentiram-me ontem
e hoje mentem novamente. Mentem
de corpo e alma, completamente.
E mentem de maneira tão pungente
que acho que mentem sinceramente.

Mentem, sobretudo, impune/mente.
Não mentem tristes. Alegremente
mentem. Mentem tão nacional/mente
que acham que mentindo história afora
vão enganar a morte eterna/mente.

Mentem. Mentem e calam. Mas suas frases
falam. E desfilam de tal modo nuas
que mesmo um cego pode ver
a verdade em trapos pelas ruas.

Sei que a verdade é difícil
e para alguns é cara e escura.
Mas não se chega à verdade
pela mentira, nem à democracia
pela ditadura.

(Poema composto de 5 fragmentos)


O ÚLTIMO TANGO NAS MALVINAS

Os homens amam a guerra. Por isso  
se armam festivos em coro e cores  
para o dúbio esporte da morte.  

Amam e não disfarçam.  
alardeiam esse amor nas praças,  
criam manuais e escolas,  
alçando bandeiras e recolhendo caixões,  
entoando slogans e sepultando canções.  

Os homens amam a guerra. Mas  não a  amam  
só com a coragem do atleta  
e a empáfia militar, mas com a piedosa   
voz do sacerdote, que antes do combate  
serve a hóstia da morte.  

Foi assim na Criméia e Tróia,  
                 na Eritréia e Angola,  
                 na Mongólia e Argélia,  
                 na Sibéria e agora.  

Os homens amam a guerra  
e mal suportam a paz.  

Os homens amam a guerra,  
portanto,  
não há perigo de paz.  

Os homens amam a guerra, profana  
ou santa, tanto faz.  
  
Os homens têm a guerra como amante,  
embora esposem a paz.  

E que arroubos, Meu Deus! Nesse encontro voraz 
que prazeres! que uivos! que ais!  
que sublimes perversões urdidas  
na mortalha de lençóis, lambuzando  
a cama ou campo de batalha.  

Durante séculos pensei  
que a guerra fosse o desvio  
e a paz a rota. Enganei me. São paralelas,  
margens de um mesmo rio, a mão e a luva,  
o pé e a bota. Mais que gêmeas,  
são xifópagas, par e ímpar , sorte e azar.  
São o ouroboro _ cobra circular  
eternamente a nos devorar.  

A guerra não é um entreato.  
É parte do espetáculo. E não é tragédia apenas,  
é comédia, real ou popular,  
é algo melhor que circo:  
              _ é onde o alegre trapezista  
              vestido de kamikase  
              salta sem rede e suporte,  
              e o contorcionista se parte  
              no kamasutra da morte.  

A guerra não é o avesso da paz.  
Ë seu berço e seio complementar.  
E o horror não é o inverso do belo  
_ é seu par. Os homens Amam o belo,  
mas gostam do horror na arte. O horror  
não é escuro, é a contraparte da luz.  
  
Lucífer e Lusbel, brilha como Gabriel  
e o terror seduz.  
                          Nada mais sedutor  
que Cristo morto na cruz.  

Portanto, a guerra não é só missa  
que oficia o padre, ciência  
que alucina o sábio, esporte  
que fascina o forte. A guerra é arte.  
E com o ardor dos vanguardistas  
freqüentamos a bienal do horror  
e inauguramos a Bauhaus da morte.  

Por isso, em cima da carniça não há urubu,  
chacais abutres,hienas.  
Há lindas garças de alumínio, serenas  
num  eletrônico balé.  

Talvez fosse a dança da morte, patética.  
Não é. É apenas outra lição de estética.  
Daí que os soldados modernos  
são como médico e engenheiro  
e nenhum ministro de guerra  
usa roupa de açougueiro.  

Guerra é guerra  
                         dizia o invasor violento  
                         violentando a freira no convento.  
Guerra é guerra  
                        dizia a estátua do almirante  
                        com a sua boca de cimento.  
Guerra é guerra  
                        dizemos no radar  
                        degustando o inimigo  
                        ao norte do paladar.  
  
Não é preciso disfarçar  
o amor à guerra, com história de amor à Pátria  
e defesa do lar. Amamos a guerra  
e a paz, em bigamia exemplar.  
Eu, poeta moderno ou o eterno Baudelaire,  
eu e você, hypocrite lecteur,  
mon semblabe, mon frère.  
Queremos a batalha, aviões em chamas,  
navios afundando, o espetacular confronto .  

De manhã abrimos vísceras de peixes  
com a ponta das baionetas  
e ao som da culinária trombeta  
enfiamos adagas em nossos porcos  
e requintamos de medalha  
                        os mortos sobre a mesa.   

Se possível, a carne limpa, sem sangue.  
Que o míssel silente lançado a distância  
não respingue em nossa roupa.  
Mas se for preciso um banho de sangue  
como dizia Terêncio:  Sou humano  
e nada do que é humano me é estranho.  
   
A morte e a guerra  
                  não mais me pegam ao acaso.  
                  escrevo sua dupla efígie na pedra  
                  como se o dado de minha sorte  
                  já não rolasse ao azar.  
                  Como se passasse do branco  
                  ao preto e ao branco retornasse   
                  sem nunca me sombrear.  
Que venha a guerra. Cruel. Total.  
O atômico clarim e a gênese do fim.  
Cauto, como convém aos sábios,  
primeiro bradarei contra esse fato.  
   
Mas, voraz como convém à espécie,  
ao ver que invadem meus quintais,  
das folhas da bananeira inventarei  
a ideológica bandeira e explodirei  
o corpo do inimigo antes que ataque.  
E se ele não atirar nem viver, aproveito  
seu descuido de homem fraco, invado sua casa  
realizando minha fome milenar de canibal  
rugindo sob a máscara de homem.  

Terrível é o teu discurso,  poeta!  
escuto alguém falar.  
                           Terrível o foi elaborar.  
                           Agora me sinto livre.  
                           A morte e a guerra  
                           já não me podem alarmar.  
                           Como Édipo perplexo  
                           decifrei as  em minhas vísceras  
                           antes que a dúbia esfinge  
                           pudesse me devorar.  

Nem cínico nem triste. Animal  
humano, vou em marcha, danças, preces  
para o grande carnaval.  
Soldado, penitente, poeta,  
a paz e a guerra, a vida e a morte  
me aguardem  
                      num atômico funeral.  

Acabará a espécie humana sobre a Terra?  
Não.  Hão de sobrar um novo Adão e Eva  
a refazer o amor, e dois irmãos:  
Caim e Abel  
                        a reinventar a guerra.