Histórias da Publicidade 2  

 

O ESCUDO INVISÍVEL.

A minha memória leva me de novo aos finais dos anos sessenta. Apesar do Maio de 68 em Paris, à Telecine continuavam a chegar algumas modelos acompanhadas pela mãe, por uma tia ou por um irmão com ar comprometido ou agressivo, conforme os casos. Descarregar os nervos no estúdio proferindo vernáculos, era mesmo muito mal visto. Alguma mãe levantaria certamente o sobrolho, preparando se para arrebatar dalí para fora a sua filha, ao próximo sinal de desmando oral. Algumas das senhoras faziam malha, aproveitando todos os momentos para elogiar as qualidades dos seus rebentos:
Não é por ser minha filha, mas não acha que vai muito bem?
O melhor era mesmo achar, sorrir e pirar se. Pode pois calcular se o drama que não foi ter que arranjar doze jovens raparigas para juntamente com doze jovens rapazes entraram num filme a fazer na Serra da Estrela, em que a equipa técnica, incluindo maquilhagem, era toda masculina! Foram precisas muitas negociações, raparigas com irmãs ou primas que também dessem, ou até num dos casos, um irmão que iria como modelo masculino. Chamava se Júlio, achou que ser meu amigo ia ser "porreiro", sobretudo para armar diante das miúdas e ao chegar a Serra, desistiria rapidamente de "guardar a mana", como ele dizia a rir.
Felizmente tinham começado a aparecer por essa altura loiras estrangeiras que estavam a criar os primeiros núcleos de modelos profissionais e resolveram parte do problema. Um loiro noivo de uma delas, acabou por entrar também no grupo.
Respirei de alívio, pensando na minha ingenuidade, que o pior estava conseguido...
O Jaime Brito pela Ciesa e eu pela Telecine, lá partimos a caminho da Serra da Estrela, na esperança de que a neve que já caíra, desse para fazer o filme.
A Serra nessa época, estava muito mais longe do que hoje, ou pelo menos demoravam se muito mais horas a chegar lá. Bem, os aceleras da altura garantiam com ar superior, que faziam metade do tempo que nós tinhamos feito. Mas isso é outra história.
No dia seguinte percorremos toda a Serra à procura de neve. Havia alguma, mas parece que pouco própria para o que se pretendia. É que era preciso esquiar contra um enorme vidro e, no último momento virar, atirando neve contra o "Escudo Invisível ". Os esquiadores da Covilhã, torciam o nariz. Era melhor esperar por mais neve. Assim era perigoso.
E os dias iam passando à espera de que uma bela manhã tivéssemos a surpresa de, ao acordar, ver a Serra toda nevada! Houve um deles que foi falar com um velho pastor que com grande seriedade e sabedoria popular , olhando as núvens e escutando o vento, garantíu que ia nevar nessa noite. Imperturbavelmente no dia seguinte, como qualquer metereologista que se preze, soube sem pestanejar, a razão exacta pela qual a Serra não tinha ficado toda branca, como tinha prometido:Um corvo voara para sul.
O pior é que tanto a Telecine como a Ciesa, em Lisboa, queriam pouco ou nada saber destes dramas e começavam a evidenciar sinais de nervosismo. Havia prazos! Estava a perder se tempo!
Nessa noite, conversando com os esquiadores, explicámos que os filmes de publicidade, tinham que ir para o ar em datas já marcadas e que se demorávamos muito, acabávamos por ter problema de modelos. Eles ofereceram se imediatamente para arranjar mais uns quantos amigos que embora não soubessem esquiar bem...
Mas e as moças?
Preguntei eu.
Entreolharam se com o olho a brilhar e disseram em coro:
Ah! Mas há raparigas?
Doze.
DOZE? É pessoal!
E logo alí combinaram ir no dia seguinte, devidamente equipados, experimentar a neve e fazer um esforço para " nos ajudar". E de facto no dia seguinte por lá andaram, para diante e para trás, até acertarem no veredicto final: Com muito cuidado, ate era capaz de dar.
Mas vocês não disseram que era perigoso?
Ora! Quando aparecerem as garotas, a neve até se mete logo a geito.
Riram muito da graça mas um deles, o Convencido, passou me com uma súbita familiaridade o braço pelo ombro e disse me que eles realmente o que queriam era facilitar nos a vida. Pois. Quando telefonámos para Lisboa para mandar vir toda a gente, omitimos que havia lobos na Serra
Nessa noite, o Jaime e eu, tivémos uma boa amostra do que nos esperava. De todos os lados aparecia gente a convidar nos para os copos e "as miúdas? Como é que era o material? "
Por sorte nossa, ou pouca sorte deles, nem o Jaime nem eu eramos de copos. Bebemos pouco e lá fomos contando que as miúdas não eram o que eles estavam a pensar.
Porra! Já estou a ver que vocês querem é tudo para vocês!
Que não, que não era nada disso, que as miúdas até andavam sempre com as mães atrás!
É rapaziada! Essas são as piores!
As melhores! As melhores!
Gritaram os outros a rir. E logo ali o Convencido, apostou que "comeria" pelo menos três.
Ficou a olhar se ao espelho do bar, ageitando o cabelo e o nó da gravata, sumamente agradado com o que estava a ver.
Um dos outros, imitando lhe os gestos, mas amaricando os:
É pá... tu tens cá... uma mania!
Riram todos muito, que os copos já ajudavam bastante. No dia seguinte, a malta dos esquis e os seus muitos amigos mirones, foram aparecendo bem cedo. Nenhum deles queria perder a chegada das miúdas. Fez se um silêncio religioso quando o autocarro parou. Eles bem tentavam espreitar quem vinha lá dentro, sem grande resultado. E quem começou a sair primeiro, foram os matulões, ensonados e com cara de poucos amigos pelo frio que fazia. Menos o Júlio que correu "íntimo" a abraçar me, de forma a que toda a gente visse que era meu amigo, coisa que na altura eu não sabia, mas de que ele já nem duvidava.
Primeiro um, depois outro e outro, a malta dos esquis começou a olhar se entre eles e depois para o Jaime e para mim, com a vaga suspeita de que lhes tinhamos pregado uma partida de mau gosto. Mas que raio, então só havia gajos!? E quando a coisa parecia começar a pôr se feia, eis que aparece ensonada a Vanda que ao ver o ajuntamento, acordou imediatamente e saudou, qual estrela, toda a rapaziada. Rebentou uma salva de palmas sem fim. As outras raparigas começaram a sair divertidas com o acolhimento e enquanto eles aplaudiam embevecidos, elas gostaram de se sentir estrelas, como o nome da Serra aonde tinham chegado.
Tirando o Convencido, a maior parte deles até era um grupo de malta simpática, alegre e divertida, saudavelmente deslumbrados por todas aquelas raparigas tão bonitas, tão alí à mão e aparentemente tão disponíveis. Foi fácil começarem a sonhar com loucas aventuras de amor, por essa Serra fora...
Mas um deles, o João, cruzou um olhar diferente, suspirado, com a Inês, menina de Lisboa. Foi um olhar demorado e terno de parte a parte, que pareceu ser eterno. A Estalagem era pequena para tanta gente. Mas naquela época na Serra, era tudo o que havia. Foi pois preciso meter mais camas nos quartos. Tanto mais que o Júlio, com grande determinação, exigiu que os loiros noivos ficassem sós, num quarto, o que complicava ainda mais as coisas. Mas o que é certo é que toda a gente concordou e assim se fez, com grande alegria do Júlio. Confessar me ia mais tarde que depois disto, o loiro casalinho não poderia deixar de lhe emprestar o quarto, se ele conseguisse um arranjinho qualquer
Era tudo gente nova e divertida, longe de casa, preparada para gozar o momento o melhor possível. Menos a Vanda, claro! Já tinha feito uns quantos filmes de publicidade e julgava se a vedeta. Não tinha ela sido recebida com palmas? Como era possível não ter um quarto só para ela? A dura realidade é que teve que compartir quarto com outras duas. Ficou de trombas, sem falar com ninguém. O pior foi que as outras duas resolveram vingar se da "diva", espalhando que a Vanda era uma conhecida "fufa". Desta maneira envolveram a rapariga numa curiosidade que ela sentia, sem conseguir compreender. Meio isolada, mais por vedetismo do que pela fama que lhe arranjaram, meteu se nos copos e evidentemente caíu nas redes do Convencido. De repente, desapareceu. Bem a procurava o Convencido, mas sem resultado.E como as outras não lhe ligavam nenhuma, lançou se o Convencido a pagar copos a toda a gente para os "deixar fora de combate" .
Os outros moços da terra, perceberam rapidamente que aquilo não era o que o outro tinha dito e foram se retirando aos poucos. Só o jovem esquiador João foi ficando a falar meigamente com uma Inês radiosa, muito mais faladora do que o pouco que se conhecia dela. O Júlio veio sentar se a meu lado na esperança de que desta forma, ganharia credibilidade junto das garotas. Acabaram por se juntar ao grupo umas quantas modelos. O Júlio, ufano por estar ao pé de mim, fazia me comentários ao ouvido, para se dar ares. Foi nessa altura que me pareceu perceber que o Convencido se preparava para levantar da cama a senhora da cozinha para fazer caldo verde! Fui falar com o João. Começava a ser muito tarde!
O pobre do João olhou as horas, pediu desculpa pelo amigo, que sem querer saber de razões, cheio de copos, protestava e já ameaçava que quem tinha arranjado os esquiadores fora ele! O João aflito, pedia para não ligarmos e dizendo lhe qualquer coisa ao ouvido, fê lo calar. Foi outra luta para não o deixar guiar, mas o João lá conseguíu, explicando nos que a diferênça de altitude entre a Serra e a Covilhã, ajudava a aumentar a bebedeira. Lá se foram embora e nós entrámos cheios de frio.
Finalmente ia poder descançar. Fui para o meu quarto e preparava me para me deitar quando o Jaime bateu à porta.
Luís, a Vanda está a dormir na minha cama.
Fiquei a olhar para ele e entrou me uma enorme vontade de rir.
Ela bem disse que queria um quarto só para ela!
Não te rias, porra! Onde é que eu durmo?
Pronto! Agora a sério! Vamos lá então acordar a menina Vanda!
Isso já eu tentei. Não dá. Não acorda. O que é que eu faço?
Deitas te ao lado dela, devagarinho
E de repente ela acorda e arma bronca! Nem penses!
Foi assim que a Vanda ficou a dormir sózinha no quarto do Jaime e o Jaime foi dormir para um quarto que estava reservado mas que, segundo o ensonado guarda da noite, afinal estava livre.
O dia seguinte começou com a colocação do gigantesco vidro da Tóbis, o que além de ser complicado ia demorar o seu tempo. Os esquiadores estavam preparados, os modelos maquilhados.
Finalmente foi possível arrancar a filmagem.
Alentados pela presença feminina e ainda embalados por sonhos de amor, os esquiadores passavam rasando o vidro e superavam todos os receios, arriscando sem pensar e na brincadeira, tudo! Comecei a sentir calafrios. A certa altura ouví um grito, ao passar vertiginosamente perto do vidro, um deles. Fôra a Inês. O João, como se não fosse nada, veio orgulhoso, satisfeito com a sua proeza, procurar os olhos ainda apavorados da rapariga. Ganhara a aposta de ser o que passara mais perto do vidro! O Convencido ainda não aparecera, para grande descanso das nossas cabeças. Mas todos sabíamos que com ele não havia "Escudo Invisível" que nos valesse. Apareceu por fim. Convidava toda a gente para uma petiscada de tordos, na sua cabana na Serra. Parte das pessoas desculpou se como pôde e não foi. Os outros, que remédio, lá fomos. A cabana, juntamente com umas quantas outras, estava numa espécie de cova, quase no alto da Serra. Para a maioria de nós, gente do sul, tudo cheirava a novidade. O Convencido, feliz, tirou um saco da mala do carro e abríu a porta, avisando que tivéssemos cuidado. Olhámos para ele, surpreendidos.
É que a mulher não gostava de ver as coisas mexidas...
Entrámos a resmungar mas acabámos por ficar encantados com aquela casita de madeira, onde devia saber bem estar com a neve a cair lá fóra. Mas para mal dos nossos pecados, a pessoa que ele mandara acender a lareira não tinha ido e morria se de frio lá dentro. Acendeu uma estufa de gás, mas não era a mesma coisa, claro.
Mas o encanto, depressa acabou. Com ar triunfante, o Convencido despejou em cima da mesa o recheio do saco: Um monte de tordos. Esperava certamente que ficasse tudo deslumbrado, mas...
São passarinhos!
Mas estão todos mortos!
Ai! Coitadinhos!
Sem atender ao que estava a acontecer, o Convencido gabava se de os ter ido caçar ele mesmo, para nos oferecer o afamado petisco: Tordos com aguardente de zimbro!
E num arrebato de chefe, comandou:
Vamos mas é todos começar a depena los, para ser mais depressa! Com esta água a ferver...
Depene os você!
Era a Vanda com o seu nariz bem espetado no ar. Fez se um silêncio muito incómodo. O Convencido ficou a olhar para ela sem perceber mesmo nada. Nunca a sua mulher se teria atrevido a negar se a depenar fosse o que fosse que ele tivesse caçado!
Ia a dizer qualquer coisa mas a Vanda voltou a atacar:
Sim...o senhor que até convidou as raparigas sem sequer trazer a sua senhora, não deve estar agora a pensar com toda a certeza, que eu vim de Lisboa para lhe depenar pássaros!?
Foi um drama. Olhámos uns para os outros a tentar disfarçar a vontade de rir, mas a única solução era mesmo atirar se aos tordos e começar freneticamente a arrancar lhes as penas. Foi o que fizemos, mas a cara de nojo de algumas das raparigas, deu nos finalmente a desculpa para começar a rir abertamente. O Convencido, amuado, lá acabou por fazer o afamado petisco. Tenho que confessar que o petisco era de comer e chorar por mais. Apesar de lho termos repetido mil vezes, o Convencido, desconsolado, até a beber estava triste, irremediavelmente ferido no seu orgulho. E ficava se a fixar o copo, abanando a cabeça. Fomo nos embora e lá o deixámos a olhar deprimido para o estado em que, apesar de alguns cuidados, tudo tinha ficado. Mas o pior para ele, veio depois: A mulher veio a saber, ninguém sabe como, que tinha havido uma orgia na cabana da Serra, que até tinha metido umas "fulanas" vindas de propósito, de Lisboa. Foi o fim do mundo! Mas teria certamente sido bem pior se a Vanda tivesse sabido disto. Era muito capaz de ir lá...
Quanto aos rapazes que tinham vindo de Lisboa, afinal não se tinham portado tão bem como a princípio tínhamos pensado. Houve lutas e guerras durante boa parte da noite, até gastarem as energias geradas por tantas raparigas, tão perto e tão distantes. Quem acabou por me contar tudo mais tarde foi o Júlio, no dia em que apareceu a dizer me que na sua coleção de amigos lhe faltava um realizador e se queria ser eu. A rir, aceitei, apesar de que eu, amigos malucos, já tinha muitos. Mas este era divertido! Até que um dia, em meados de 74, me apareceu desesperado. O pai, de quem nunca tinha verdadeiramente falado, estava com problemas e a família ia (fugia!) para o Rio de Janeiro, Só nessa altura eu comecei a perceber uns estranhos silêncios dele, quando eu lhe fazia perguntas sobre a família, ou a misteriosa facilidade com que se safou numa bronca com a polícia. Olhei o. Olhou me triste, encolhendo os ombros:
Tenho que me ir embora. Vim despedir me...
Fiquei calado. De repente levantou se nervoso, e comecou a falar entusiasmado de todas aquelas praias maravilhosas...Aquí começou a cantarolar: Cheias... de encantos mil...
Depois olhou me nos olhos e garantíu a sorrir:
Vou engatar a "garota de Ipanema", queres apostar?
Será que havia uma sombra de tristeza naquele sorriso? Telefonou do Aeroporto para se despedir. Excitadíssimo. Escreveu me um postal que mostrava a praia de Copacabana. Entusiasmado, mas cheio de saudades, pedia me que lhe escrevesse na volta do correio, sem falta. Só que, talvez por se tratar de um postal, se esqueceu de escrever o remetente, com a morada...
Nunca mais soube dele. Assim como viera, desaparecera.
Em Abril de 1970, lembrei me da Inês para um filme e telefonei lhe. Ai há tanto tempo, como é que se lembrou de mim, mas não, obrigado, não podia. Deixara a publicidade desde os tempos da Serra, a pedido do João. Como insistisse, acabou por me dizer que ele não gostava nada do meio... e menos agora que iam casar! Surpreendia me o meu amigo João, com tão más recordações de nós! Com a Vanda foi pior, coitada. Morreu num horrível acidente de automóvel. Já lá vão muitos anos, mas suponho que ainda deve estar a discutir com São Pedro sobre o lugar a que se julga com direito no céu, bem na primeira fila, diante de Nosso Senhor!

Luís Couto Juromenha, Fevereiro de 1998.

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O operador inglês

Foi no tempo em que os animais falavam e em que corria a moda de se filmar com directores de fotografia ingleses, pelo simples facto de a estética do cinema publicitário inglês ser considerada o nec plus ultra , como se isso pudesse ser desligado de tudo o resto: a criatividade, os meios financeiros, a experiência e os anos de profissão dos intervenientes.
Enfim, modas são modas, e nós cá as vivemos.
Começaram pois a vir cá filmar uns senhores, uns melhores e outros piores, a quem se desculpava muita coisa pelo simples facto de serem britânicos e custarem muito dinheiro para fazerem o que se esperava deles. Com alguns criaram se excelentes relações porque vieram sem arrogância e na perspectiva de aprenderem alguma coisa connosco. Sabiam que não sabiam tudo. E sobretudo quando o tempo era mais ameno, adoravam vir passear dois ou três dias a Lisboa. Um deles com quem filmei muitas vezes, quando o orçamento era apertado, aceitava vir sem cachet, só pelo passeio, o banho na piscina do hotel onde pedia para ser instalado, e o fabuloso peixe português que devorava todas as noites. Depois do banho. Por tudo isto só aceitava trabalhar aquelas horas que o contrato (qual contrato ?) estipulava, para poder usufruir das coisas boas que o cá traziam.
Um dia telefonou me para me convidar para jantar. Estava a filmar com uma produtora concorrente mas pedia me para o ir buscar ao estúdio ás sete da tarde porque certamente já teriam acabado já que lá estavam desde as nove da manhã.
Achei muita fruta. Que dia de filmagens é que acaba ás sete ? Só se fôr dia de festa, se tudo correu muito bem, ou muito mal. Viu me à porta do estúdio, enfiou os fotómetros no saco que pôs a tiracolo e veio ao meu encontro despedindo se aos berros, sem olhar para trás.
Fez se um silêncio gelado no estúdio. O produtor correu para ele e tentar travar lhe o passo. Debalde. Sem parar, deu me o braço e arrastou me dali para fora.
No carro perguntei lhe o que se tinha passado. Não tinham acabado de filmar ?
Riu se, mostrou me o relógio e disse me que não tinham impresso um único fotograma desde as sete da manhã. Tinha sido um dia em cheio. E caro. Nessa noite, o salmonete não me soube tão bem.

José Pedro Andrade Santos. Fevereiro de 1998

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O Povo, os redactores e os locutores.

É preciso coragem para chamar às linhas que se seguem uma história de publicidade! Mas à falta de melhor!...
Estávamos em plena gravação quando esta, sem razão aparente, foi suspensa.
Do lado de lá o Ximenes, o autor do texto, disse:
"Luís, leste mal Madrid. Diz se Madri e não Madride. Não se lê o d final.
"Desculpa, mas diz se Madride.
Madri. Sempre ouvi dizer Madri.
"Ouviste? Mas ouviste onde? Em tua casa? Na tua rua? Olha que a Gramática manda dizer Madride !
Quero lá saber da gramática! Madri é como o Povo diz! E é o Povo que faz a língua!"
O Ximenes, afinal um bom rapaz, condescendente, deixou me dizer Madrid lendo o d final!
Puz a questão ao Ciberdúvidas da Língua Portuguesa.
Eis a resposta:
"Em David e Madrid o d final pronuncia se. Mas no Brasil, como se escreve "Madri" não tem qualquer problema de pronúncia."
Mandei esta resposta ao Ximenes por "e mail". Ele tem "e mail". É um rapaz moderno e actualizado. E não é brasileiro! Respondeu me com estas simples palavras :"Insisto! É o povo que faz a língua!"
Digam lá que o Ximenes não tem "carradas" de razão!

Luís Gaspar Fevereiro de 98

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Assalto à Alfândega.

Já lá vão mais de vinte e cinco anos! Creio que segundo a lei portuguesa, crime praticado há tantos tempo está prescrito. Ou talvez dependa do crime, não é?
À cautelela contarei esta história sem mencionar nomes e locais...
Fora nos encomendado um filme cuja acção se desenrolava no deserto. Decidimos ( o orçamento tinha isso em conta) filmar no Sáara. Com antecedência enviámos para um país do Norte de África o Director de Produção com vista à escolha de locais, apoio técnico, autorizações, alojamento, transportes, etc.
A Embaixada do País onde queríamos filmar tinha sido muito cooperante. Fornecera nos informações preciosas e uma delas tinha a ver com a forma de entrar com o material de cinema. Nunca tentássemos entrar sem uma autorização do departamento local de cinema. Isso poderia significar que o equipamente fosse apreendido na Alfândega. E nesse caso nunca mais o veríamos tal era a confusão por essa bandas.
As notícias do nosso Director de Produção eram escassas pelo que decidimos avançar, pelo menos até Algeciras, e aí esperar. Dois dias em Algeciras e quanto notícias...nada!
Que diabo! Tínhamos uma coisa que, na altura se chamava "Carnet ETA", que servia para transportar sem documentos de exportação/importação as mercadorias ou equipamentos necessários à nossa actividade! O material de cinema parecia caber na designação, portanto, vamos para a frente!...
Claro, chegados ao país em questão, o nosso material de cinema ficou apreendido na Alfândega! Não sei porquê acompanhei os funcionários até ao armazem onde as malas da câmara e acessórios ficaram depositadas no meio de milhares de outros volumes. A tal confusão referida pela Embaixada!
Já no exterior do porto, finalmente, encontrámos o nosso desaparecido Director de Produção que, diante da situação nos recomendou calma e que esperássemos por ele. Passado algum tempo surgiu dentro de um taxi. Convidou me a entrar e pediu aos restantes membros da equipa que aguardassem.
Entrámos na Alfândega sem que os guardas nos incomodassem. Seguindo as minhas indicações dirigimo nos ao vasto armazém onde se encontrava a nossa câmara. Sem ninguém à vista metemos as malas no taxi e saimos da zona do porto como havíamos entrado, isto é, sem que ninguém nos incomodasse!
Filmámos com o coração nas mãos. Mas nada aconteceu. Provavelmente seria à saída que os problemas surgiriam. Para evitar o porto onde o "crime" havia sido praticado mandámos o equipamento para Lisboa , de avião, sem contratempos.
Nunca foram prestadas contas pelo "assalto à Alfândega"!
Não cheguei a perguntar ao Director de Produção por onde tinha andado durante aqueles 15 dias para conhecer motoristas de taxi tão "úteis".

Luís Gaspar Fevereiro de 1998

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O pato e o Rapazote.

Para os visitantes desta página mais dados às filosofias orientais, para os acreditam que o simples gesto de matar uma borboleta, hoje, num qualquer país do Extremo Oriente, pode provocar, um dia destes, uma revolução na América Latina ou reacender a guerra na Europa ( porquê, a Jugoslávia não é na Europa ?) aqui vai a história de como o João Rapazote fica a dever a um pato a posse da Panorâmica.

Era uma vez um filme de publicidade...

A Agência de Publicidade "Suiço Português" encomendou um filme à Panorâmica para anunciar uns fogões. Tratava se de uma ideia do Ary dos Santos, na altura a trabalhar nessa Agência, e contava a história de um pato que, passeando se por uma cozinha, falava sobre as vantages do tal fogão. Presmalt? Indesit? Não importa....

Durante as filmagens o representante da Agência ( o sócio "Português") não parava de dizer: "Luís! O pato não deve ir para aquele lado!", "Olhe que não é assim! O pato vai mal!", "O pato assim, o pato assado!". O homem não se calava um momento! Desesperado com as críticas e recomendações ao pato ( e a mim, certamente por não falar "patolês") o "saco" enchia perigosamente agravado com o facto de andar, nessa altura, com excesso de trabalho. Geria sózinho a Panorâmica e era o seu único realizador. E a certo momento aconteceu: aos gritos pus o Cliente fora do estúdio!

No momento seguinte, mais calmo, apercebi me que não podia continuar, sózinho, a fazer tudo na produtora.Era preciso encontrar alguém que me ajudadasse.

E foi assim que, graças ao pato...o João começou a trabalhar na Panorâmica!

P.S. O filme acabou por ser feiro e, se a memória não me atraiçoa, recebeu um prémio. Não perdi o Cliente. Voltei a fazer outros filmes para o Suiço Português!
E era a minha, a voz do pato!

Luís Gaspar. 29.01.98

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NO REINO DOS CASTELHANOS.

Bom, acho que colocamos tudo na mochila: feijão, pastéis de Belém, caipirinha, farofa, vinho do Porto, bacalhau com natas, pão de queijo.
É, acho que está tudo. Podemos fechar a mochila.
Bom, acho que ficaram umas coisinhas de fora...
Puxa...a mochila está quase cheia, acho que não cabe mais nada... Bom, tem que caber...olha lá...
Ah, os corações...Bom, vai lá, pega os corações...
Pegou...?
Olha, peguei; mas não estão inteiros. Lembra né...? aquela parte quebradinha que ficou no Brasil e não colamos até hoje...e agora acabei de ver que quebrou mais um pedacinho que vai ficar aqui em Portugal.
Tá bom, tá bom, então pega o teu coração com cuidado e faz o seguinte:
coloca ele ali...
Onde...?
Ali;...bem aconchegadinho entre as lembranças da família e dos amigos para ele ficar protegido e não balançar muito.
Ao lado dos amigos...? Brasileiros, portugueses, americanos e de outros lugares...mas cabem todos??
Claro que tem que caber: sem a saudade dos amigos eu não vou.
Então tá bom: você me ajuda a colocar a saudade ao lado dos amigos, bem juntinho mesmo; e eu ajudo você a colocar as boas lembranças bem pertinho de Portugal.
Colocou...?
Coloquei.
Isso...então agora pega o meu coração e coloca junto do seu. Pronto.
Agora não quebra mais.
Deixa eu ver...você colocou o "dá cá um beijinho"?
Coloquei.
E os sorrisos e o bom humor...?
Já estão embaladinhos.
Bom, agora falta pouco...colocar...deixa eu ver...o mar...
O mar?? Ah, eu acho que não vai caber não...
Olha; eu não saio daqui sem o Atlântico, mesmo que seja com poucas ondas para não ocupar muito espaço.
Vai, me ajuda aqui...faz uma forcinha...isso...mais força...tá quase...vai...empurra aqui do ladinho...isso...Pronto, conseguimos e ainda sobrou um espacinho.
Ah, então aproveita este espacinho para colocar o calçadão...isso...perfeito.
Mais alguma coisa? Olha, estava olhando em volta e achei o "inho" e a "inha" que a gente usa a toda hora no Brasil e aqui em Portugal.
Bom...mas lá eles tem o "ito".
Mas nem se compara ao nosso maravilhoso "inho"...tão bonitinho...que gracinha...Imagina se eu vou usar o "bonitito"...
Ah não! Do "inho" eu não abro mão de jeito nenhum, tem que levar.
Olha, então fazemos o seguinte: pega a tua bolsa de mão e coloca o "inhos" e aproveita e pega o til e a cedilha que eu tenho aqui na mão e põe tudo junto.
Mas para que o til e a cedilha se a gente nem vai usar lá?
Mas eles são tão bonitinhos...a curvinha do til e o balancinho da cedilha...são uma gracinha.
Ah, tudo bem, me lembrei...lá eles usam o til em cima do "n"...não tem problema...
Tem problema sim...o meu til eu não vou colocar em cima de "n" nenhum, não vou mesmo. Que absurdo!
Ele nunca ficou em cima de "n" nenhum a vida inteira e não é agora que vai se acostumar...pode até mesmo ficar traumatizado, já pensou que horror...coitadinho...
Eu sei, eu sei. Bom, fazemos o seguinte: chegando lá eu emolduro os dois bem bonitinho, pregamos na parede e ficamos olhando para eles de vez em quando...tem razão, não podemos abandonar eles aqui sem mais nem menos depois de tanto tempo: são como velhos amigos. E depois; quando a gente falar portugues, vai ter que usar eles de novo de qualquer maneira...já sei, encontrei a solução: vamos congelar eles...é...como aquele lance de congelar as pessoas...os americanos não congelaram o Walt Disney?...pois é...se eles podem, nós também podemos congelar o nosso til e a nossa cedilha.
Resolvido, tá bom, mas; e no contêiner sobrou algum espaço...?
Nada: está todo tomado de música brasileira, não cabe absolutamente mais nada.
Mas, e aquele espacinho entre o Tom Jobim e o João Gilberto...?
Bom, você sabe como é o João Gilberto, todo cheio de ficar na privacidade e coisa e tal.
Ah é...? Então faz o seguinte: vai lá e pede educadamente para o João
Gilberto dar uma encostadinha pro lado do Tom senão ele não vai.
Pronto, já fui, falei com ele e sobrou um espacinho do lado do "pato vinha cantando alegremente".
Ok, então neste espacinho coloca o Madredeus. Tenho certeza que o Tom o João e o Madredeus vão se entender perfeitamente.
E agora, falta mais alguma coisa?
Pra falar a verdade faltam muitas...a maioria, que a gente vai deixando pelo caminho...semeando e indo em frente...
Mas; e aquela frase que você escutou o outro dia...vamos levar...?
Que pergunta...claro...você não viu, mas eu coloquei lá dentro dos nossos corações, pra ela ficar bem quentinha...
Mas não dá para tirar para eu ver ela só um pouquinho antes de ir...?
Bom, agora a mochila já está fechada e é hora de seguir em frente. Mas se você quiser eu falo ela pra você.
Mas você lembra...?
Claro, eu não disse que tinha colocado dentro dos nossos corações...?
Então fazemos o seguinte: vamos andando e você vai falando ela...
Tá bom...fechou a mochila...?
Fechei.
Então vamos por aqui...
Tá, mas fala, vai...
Ok..."...Como na fuselagem dos aviões, como nos mastros dos navios, existe uma bandeira num ponto situado entre o coração e a alma de cada um de nós. E eu levo a bandeira do meu país aonde estiver e aonde for..."
Linda...Bom, mas agora temos os touros...
É, os touros... o hasta la vista, o flamenco, o Olé...Ah, e a Monarquia...
A Monarquia...? Hi...eu sou presidencialista...será que vou me acostumar com a Côrte...trono, corôa e tudo aquilo?
Bom, pra quem como nós, sem experiência anterior se saiu perfeitamente bem com o lance de primeiro ministro; Monarquia vai ser uma moleza...
Tá bom, tá bom, me convenceu...mas...e a Macarena..será que se a gente não souber dançar vai dar problema...?
Olha, vamos andando que que o Flamenco nos espera...Caliente...
Caliente...? o que é "Caliente"...heim...? fala...vai...

. (Palavras escritas por Danyel Sak, um caminheiro do Mundo de partida para outras paragens . Deixa muitos amigos entre os publicitários portugueses. Deixou , também ,muito bom trabalho na Young . Muitas felicidades, Danyel! E obrigado pela tua colaboração 24.01.98)

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A POLAROID

O ciclorama branco, translúcido leitoso, estava iluminado.
Com todas as outras luzes do estúdio apagadas, as pessoas andavam de volta dele, cada uma com a sua função, num silêncio quase religioso, como se fosse um ritual mágico.
O meu asssistente, o Vasco, disse me ao ouvido:
Está alí o Pedro.
Meio hipnotisado pelo acerto das luzes, olhei o como se me tivesse falado em grego, sem perceber nada.
Aquele amigo meu, para o ajudar, enquanto eu estiver fora
Ah, sim...chama o lá.
Vindo da sombra. foi ganhando forma o Pedro, até chegar à zona de luz. Bem vestido, boa figura, olhar curioso, esperto. A cara, embora com um meio sorriso amável, era misteriosa e de uma beleza agressiva. Ou seja: Ia ter alguns clientes de meia idade a embirrarem com ele, sentindo se ameaçados no seu domínio das garotas, durante as filmagens e, as clientes, sobretudo as mais maduras, a achá lo uma "gracinha". Talvez desse uma coisa para a outra. No entanto, para a época, o pequeno brinco em forma de bola, ia, de certeza, dar que falar.
Está bem. Depois...
Posso ficar a ver? Para ir percebendo o que vou ter que fazer...
O Vasco ia levá lo dalí para fora, como que a pedir me desculpa.
Não, pá. Os clientes não gostam de caras deconhecidas.
Mas o cliente, que tinha acabado de voltar, ouviu e, disse que por ele, não fazia mal, que podia ficar.
Mesmo sem ter a certeza de que o cliente tivesse visto o brinco, achei que era um bom sinal. Mas com o seu sexto sentido,o Pedro olhou me para me pedir se podia ficar. Aprendia depressa.
Era evidente que o tipo era esperto e, deixei o ficar a ver.
Ficou combinado que ele entraria já no dia seguinte, a fim de se ir integrando. Fê lo tão rapidamente que o Vasco, começou a ficar preocupado. O Pedro mostrava, sem esforço, que era melhor do que ele.
Mas se é certo que o Vasco partíu, claramente arrependido de lá ter metido o outro, o destino se encarregou de que ele não voltasse e, o Pedro, naturalmente, ocupou o lugar.
Evidentemente, alguns clientes embirravam com ele, ou melhor, com o brinco, como diziam. Mas o que é certo também, é que o Pedro, sabia dar a volta por cima, sempre amável.
Evidentemente também, havia muito quem não tirasse os olhos de cima dele, mas a habilidade do rapaz para, com a maior simpatia ignorar tudo, chegava a raiar a genialidade.
Mas há gente insistente e, um dia, uma cliente, pedíu uma foto dele, para um casting. Fui obrigado a fazer lhe uma polaroid.
A pouco e pouco, a imagem do Pedro, foi se materializando.
Cada vez mais nítida, a fotografia, começava a desvendar muito mais do que ele deixava ver. Quando o processo acabou, eu fiquei completamente surpreendido a desvendar tudo o que a polaroid me estava a mostrar. Olhei o e, descobrí que afinal, estava tudo na cara dele, mesmo ao natural. Ele tinha era a enorme habilidade de o esconder.
Ficou a olhar para mim, meio surpreendido:
Está bem, não está?
Está, mas vamos tirar outra. Esta fica para a cliente que, aposto, se vai esquecer de a devolver.
Levantou os bracos em sinal de inocência. De repente percebeu que havia qualquer coisa, quando viu a forma como eu olhava a nova polaroid, à medida que se ia formando.
O que é que tem a fotografia? Ou sou eu?
Vem almocar comigo. Eu convido.
Guardei a fotografia no bolso. Ele esperava que eu começasse a falar, mas tinha que arrumar as minhas ideias primeiro.
Durante toda a viagem de carro, nem ele nem eu dissemos nada.
Num restaurante calmo, fora de Lisboa, enquanto esperávamos pelo que tínhamos pedido ele simplificara, pedindo o mesmo que eu eu tirei a fotografia do bolso e passei lha.
Quem é este gajo?
Sou eu.
O da fotografia ou o que trabalha comigo?
Ficou a olhar para mim. Sério.
Olha para os teus olhos.
O que é que...
Calou se e atirou a fotografia para cima da mesa.
Foda se...Mas como é que você descobriu?
Na fotografia os teus olhos estão vidrados.
Mas tem alguma queixa de mim? Alguma vez falhei?
Não. mas acho que tenho o direito de saber com o que posso contar.
Conta comigo.
E posso?
Pode. Sei muito bem o que hei de misturar para funcionar...
Calou se. Olhou me com um sorriso triste:
Nesta altura, com o meu pai, já tinha levado um murro nas trombas. Conversa acabada.
E com a tua miúda?
Ficou de repente muito interessado na comida, embora sem comer.
Não respondeste.
Vou para o olho da rua?
Não sou o teu pai. Mas uma coisa te garanto eu: Vamos resolver o assunto agora.
Como? Não vai querer que eu deixe a...Digo lhe já que não!
E se começares a falhar
Vou me embora eu!
Acabava de tocar no meu ponto fraco: Responsabilizava se e desafiava me. Aceitei.
De repente comecou a falar dele. Cada vez mais abertamente, cada vez mais à vontade. Do pai, da mãe, dos colegas do bairro, da droga e, finalmente, da miúda que, fora a primeira e a única!
E esta era, de facto, uma revelação surpreendente!
Da maior parte das coisas eu sabia. O Vasco, antes de se ir embora, tivera o cuidado de contar o suficiente para me deixar um pouco de pé atraz e desta forma, reservar o lugar. Claro que de droga não lhe convinha falar, embora lhe apetecesse muito, como arma definitiva para acabar com o Pedro. Mas como poderia justificar te lo metido lá?
A conversa que começou no restaurante, continuou daí para a frente, sempre que havia uma oportunidade. A pouco e pouco eu passei a ser o pai que ele gostava de ter tido, o único amigo em quem podia confiar e até, desconfio, o amante platónico a quem se pede ajuda, quando se briga com a namorada.
E eu, que nunca tivera paciência de ir a bares, fora de horas, aturar bebedeiras a algum que outro cliente, o que parece que sempre deixava algum proveito, encontro me a ficar fascinado com um gajo, que apesar de no trabalho ser impecável, admitia que tinha feito do uso das drogas, uma arte maior.
Mas um dia, sem que nada o fizesse esperar, chegou tarde a umas filmagens. Fazia tudo ao contrário. Quando fui falar com ele, descobrí que o brinco de ouro, tinha desaparecido.
Era evidente que ele não estava em condições de me ouvir
As filmagens, naquele dia, foram uma desgraça. Perdí o cliente, que já nem sequer me lembro quem era.
Ao fim do dia, veio ter comigo. Só me conseguiu dizer que, tinha acabedo com a miúda e que não queria falar.
Foi se embora, sem dizer mais nada. Não fiquei zangado, fiquei profundamente triste. Comecei a temer o pior.
No dia seguinte, quando cheguei, já lá estava. Era sexta feira. Seguiu me até ao meu gabinete.
Como prometí, vou me embora. Só lhe queria pedir desculpa.
Fiquei a olhar para ele, mas ele queria acabar depressa.
Gostava que me pagasse agora, mesmo que me desconte o dia...Quero ver se, pelo menos, salvo o brinco.
Paguei lhe a semana toda, sem dizer nada. Era ele que teria de falar mas, enquanto mexia no dinheiro, só acabou por dizer:
Obrigado por não me ter pedido para ficar. Eu não ia aceitar e era chato para sí e para mim. Eu estou noutra.
Numa boa ou numa má?
Numa que eu quero.
Estendeu me a mão, estendí lhe a mão. Olhámo nos. A determinação dele, só me teria surpreendido, se eu não soubese que ele era tão puro, como duro. À saída, olhou para traz e disse me:
Se você fosse meu pai...
Olhei para ele. Encolheu os ombros.
Não ligue. São mariquices minhas.
Deixei o sair sem fazer nada. Depois de jantar, fui até ao bairro dele. Sabia, pelo Vasco, o caté onde o poderia encontrar.
Quando me viu, não gostou. Fez como se nem me tivesse visto. Havia uma mesa livre e pedí um café. Passaram uns longos minutos, antes dele se levantar e vir, devagar, ter comigo.
Sentou se e pediu uma amendoa amarga ao empregado, antes mesmo de me ter dirigido a palavra. Ficou a olhar para mim.
Voce não me conhece. Ou acha que conhece?
Conheço?
Mais do que muita gente, mas menos do que julga.
Sabe que eu me orientava menos mal, antes de ter ido trabalhar consigo? E depois, de repente, um dia, aparece o parvo do Vasco a comprar erva e, ficou para aquí a falar de arranjar um gajo para o lugar dele, enquanto ia não sei onde.
Falei com a Ana, a miúda, e ela até achou uma boa. Devia ser fácil aprender a orientar se, com umas massas extras. No cinema, há sempre muita pasta. Está a gostar do estilo do seu assistente e amigo?
E depois?
E depois? E depois, você fodeu me!
Eu fodí te? Como?
Deu me a volta como eu nunca pensei que alguém ma podesse dar. Quando dei por mim, estava a pensar que teria sido porreiro ter um pai como você. Quando estava a trocar as voltas ou a passar a perna a algum amigo daquí, dava comigo a pensar que só ao pé de sí é que eu me sentia seguro. Porra, estava a perder qualidades. Mas o pior, foi quando você começou a fazer parte das conversas de cama, entre mim e a Ana. Que se você gostava tanto de mim, era porque se calhar era mas era paneleiro e que eu devia era meter me na cama consigo, para lhe sacar dinheiro que se visse...
Ai sim? E tu?
Dei lhe uma estalada, que até fez eco! Nunca lhe tinha batido porra! Mas fiquei mesmo fodido! Percebí que gostava de sí à séria e aquela gaja, estava a abandalhar tudo.
Desatou me aos gritos: "Então o que é que lá andas fazer, meu grande paneleiro? Sim, pela merda do dinheiro que ganhas não é com certeza! Mas tu pensas mesmo que eu me governo só com amor a toda a hora? Olha que eu não tinha problema nenhum em fazer cabritos para te ajudar, filho da puta..."
A evidente sinceridade dele, surpreendeu me. Continuou:
Só agora soube que, há já algum tempo, um gajo de Campolide, cheio de pasta, a andava a comer, enquanto eu estava a trabalhar. Era para o que me servia o trabalho! No dia da bronca, ou melhor, no dia anterior, ela tinha arrancado para ir viver com esse grande cabrão. Quando cheguei a casa, encontrei um bilhete a dizer que queria continuar a estar comigo, sempre que o outro ( que lhe tratava muito melhor das necessidades da veia ) estivesse fora...
Olhou para mim, triste. Depois encolheu os ombros.
Apareceu me uma amiga dela, toda cheia de penas. O que queria era meter se na cama comigo. Pois é. Metí me na cama com ela para me vingar e dei lhe mas foi uma grande nega. Outra a pensar que eu era paneleiro. Caralhos me fodam! Mas eu não posso é viver sem a Ana. Acredite. Olhe, já estive com ela. Vou passar de corno a chulo. Dinheiro não lhe falta. Passo horas na rua à espera que o outro saia de madrugada? Paciência! É o preço que vou ter de pagar! Até parece um fado. Não gosta?
Não gosto de te ver assim, porra!
E acha que eu gosto? Nem sequer vou poder andar consigo! Sabe? Ela não gosta mesmo nada de sí. Tem ciúmes!
Ciúmes?
Tem a certeza que eu andei enrolado consigo, sem lhe sacar nada...ou seja, por gosto. Da fama de paneleiro, já não me vou livrar. Voce também não, claro está.
Bebeu de um só golpe, o resto da amêndoa amarga.
Vamos fazer de conta que é como se fossem as polaroides.
Lembra se daquela vez? Mas agora, ao contrário...
Em vez de eu ir aparecendo, vou desaparecendo...
Tu estavas mesmo a tornar te um filho para mim...
Os olhos sorriram lhe. Apertou me o braço e disse me ao ouvido, com ternura:
Esta manhã fui eu... Agora, é você que está com mariquices...
Levantou se, tirou o dinheiro para pagar e começou a rir:
Deu mo ela. Já pensou bem quantas quecas teve que haver, por que mãos este dinheiro teve de passar, para eu estar aquí a pagar a nossa despesa? E a minha... a nossa vingança!
Fiquei sentado, enquanto ele se afastou a sorrir do que dissera.
Um sorriso de cumplicidade, a que juntei o meu.
Mesmo que nunca mais nos víssemos, iamos partilhar esta cumplicidade, para sempre. E a polaroid, quase com vinte anos, continua tão nítida, como no primeiro dia!

Luís Couto Juromenha, Janeiro de 98.

ooooooooooooooo

Ouvidos de banqueiro.

A maior parte das histórias que por aqui aparecem serão, estou em crer, "razoavelmente" incompreensíveis para as pessoas que não estão ligadas à publicidade.
A que hoje se conta está nesse caso. Só as pessoas que trabalhando em publicidade frequentam os estúdios de gravação poderão "entrar" na anedota.
Hoje mesmo estive a gravar com o Rola no Som de Lisboa um filme para a campanha do JN com o Edson Athaíde, a sua equipa e o Marco, realizador da Diamantino Filmes. Como sempre, a obtenção do melhor som passou por muito trabalho, muita experimentação e o resultado final deixou toda a gente satisfeita. Como a imagem estava pronta só faltava "injectar" o som nas "cassetes de emissão" que sairam dali directamente para as estações de televisão!
Não houve, pois, aquele momento, sempre rodeado de alguma tenção, da chamada "aprovação do cliente". Confiança uns nos outros é o que é! Mas não é essa a questão que pretendo discutir. Como diria um velho amigo: "Cada um tem a confiança que merece!..."
Quero referir uma outra gravação que fiz ontem. Outro estúdio, outra Agência e, nesse caso, com a presênça do Cliente. O trabalho correu bem. Ninguém poupou esforços, o "spot" tinha um excelente texto, as vozes interpretaram bem as personagens e a sonorização acertou "em cheio" com os ruídos e a música.
Ao ponto do Cliente manifestar a sua aprovação com o entusiasmo que esta frase contem: "Não esperava que ficasse tão bom!".
Vendida a mercadoria, preparavamo nos para desmanchar a tenda quando o Cliente disse:
"Um momento que quero mostar o "spot" ao meu Director."
E aí, em tempo de som digital viu se o Cliente, de telefone encostado ao altifalante, "passar" o trabalho ao seu Director...
Que claro, como "grande" Director, e tendo em conta a "excelente" qualidade de um som transmitido pelo telefone, foi de opinião que se deveria regravar porque o nível das vozes e da música não "estava bem"...
"E os ruídos?" perguntou o Cliente de cá.
"Ruídos? Que ruídos? perguntou o Cliente de lá.

P.S. Não me perguntem, por favor, a razão pela qual dei a esta história, o título de "Ouvidos de Banqueiro."

Luís Gaspar

oooooooooooooooo

Mini férias...

Ao contrário do que se tornou habitual no mundo da publicidade, onde acabaram as horas "normais" de trabalho, os feriados e os fins de semana, o responsável por esta página pode fazer "pontes" e férias quando lhe dá na gana.
E foi o que aconteceu neste fim de semana. Umas mini férias que o atiraram para as delícias do "não fazer nada" que incluiram ... não escrever a história da semana.
O que fizeram, também, os amigos que têm dado uma ajuda com as suas memórias. O Augusto Seabra até foi fazer férias para o Brasil!...
Gostaria que todos os publicitários podessem ter feito o mesmo. Mas sei que não foi possível! Eu próprio fui "convidado" para duas gravações na véspera da Passagem... que não "aceitei", claro!
Aproveito para desejar a todos um grande ano de 98.
Muitas campanhas (com tempo para serem criadas), aumentos de salário, "transferências de sucesso", prémios nos festivais e mais o que lhes agradar.
Desejo também que no próximo ano dediquem um pouco mais de atenção a uma coisa que dá pelo nome de Internet.
Tenho ouvido com perigosa frequência muitos criativos dizerem que o trabalho na Net é para especialistas. Fazem me lembrar o tempo em que diziam que ideias para filmes era coisa para as produtores de filmes!...
Era por essas e por outras que a Telecine tinha, como Criativo, o Alexandre O'Neill e eu, na Panorâmica, o Luís Macieira e o Fernando Pernes!
Estou a ficar farto de receber "palmadinhas nas costas" por, com esta idade, andar pelas Internets!!! Preciso de companheiros!...Ou como dirá o erudito: "si vis pacem, para belium" (Se queres a paz, prepara a guerra.)

Luís Gaspar

ooooooooooooooo

Mas que grande camelo...

Fazer aquele filme tinha sido uma grande aventura. Tratava se de um anúncio para a Terylene que contava a história de um europeu que, violentamente arrastado, de mãos atadas, pelo deserto por terríveis árabes montados em camelos, se apresentava impecável no seu fato porque... era feito de Terylene.
Com aventuras interessantíssimas pelo meio (algumas das quais contarei, aqui, um dia) o filme foi rodado num País do Norte de África em pleno deserto do Saará com camelos enormes montados por verdaeiros beduínos vestidos "à maneira"
Terminado o filme era a altura de o apresentar ao Cliente.
À primeira passagem a reacção do Cliente (um senhor alemão cujo nome procurei esquecer e que tinha fama de "unhas de fome") não foi má, isto é, só falou para pedir outra passagem. Dessa vez emitiu uns sons que, tudo indicava, pareciam de satisfação.
"Mas passem mais uma vez!"
Terminada a terceira passagem perguntou que nuvens eram aquelas que se viam lá ao fundo.
"Não são nuvens. São as montanhas do Atlas!" esclareci eu.
"Montanhas no deserto? Não pode ser. No deserto não há montanhas. Não aceito um filme com montanhas!"
Diante do nosso espanto acrescentou:
"Se me fizerem um desconto de 50% no preço do filme ainda posso pensar no assunto!"
A Agência ficou silenciosa...que a Terylene era um Cliente importante.
"Não vai ter um desconto de 50%, meu caro senhor! Vai ter um desconto de 100%! Com uma condição: não leva filme nenhum!"
Foi assim que o "unhas de fome" teve de mandar fazer um filme com a mesma história (que era da Agência) à Telecine onde o Galveias Rodrigues, avisado por mim, lhe levou "couro e cabelo" pela novo filme.
Filme que acabou por ser feito nos areais do Guicho com dois camelos do Jardim Zoológico. Com uma nesguinha de mar num dos planos e as arribas noutro.

PS Depois deste filme o Jardim Zoológico deixou de "ceder" animais para fora do seu recinto. Os pobres camelos foram atropelados em plena Avenida da Liberdade quando regressavam, "à pata", a casa!

Luís Gaspar

ooooooooooooooo

O espelho do Primeiro Ministro

O acontecimento era importante para a Agencia de Publicidade ( G. Thibaud , hoje Lintas) e para a Produtora , a Telecine. Tratava se do primeiro filme feito em Portugal para o sabonete Lux.
A história do filme era muito simples: numa casa de banho espampanante, estilo, "estrela de cinema", uma menina passeava se até chegar à saboneteira onde repousava o heroi o sabonete.
Fomos ( a Agência) ver e aprovar o cenário. Estava bem. Era aquilo que se pretendia. Com um senão. Havia por lá, pendurado, um grande espelho numa muldura de mau gosto.
Foi o que dissemos. "Aquele espelho, não, porque é de mau gosto!"
"Mau gosto?" indignou se o decorador "Eu até o fui buscar à casa do nosso Primeiro, o Dr. Salazar!"
Ninguém consegui convencer o Verissímo que o Dr. Salazar, conhecido entre o povo pelo "Botas", tinha um espelho de mau gosto...

Luís Gaspar

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