Clara Ferreira Alves
no
Expresso de 30/4/2011



Os portugueses tiraram uns dias no 25 de abril. Massacrados com discursos múltiplos sobre o seu estado e a sua decadência que não percebem, foram de férias. Como também foram, aposto, os apóstolos do fim dos feriados. A economia e as finanças dominam todos os discursos e todas as vidas, carregando nas ameaças e punições. Porta-mo-nos mal. Vamos sofrer muito. Não é um momento particularmente interessante da história nem é o discurso mais adequado à mobilização nacional e ao sacrifício. Quando mais punitiva se torna a cassete mais as pessoas tapam os ouvidos, natural reação humana. Quando deixamos de confiar em nós e somos condenados à incerteza, à privação, aparecem as manobras de diversão e evasão.
Não sei quando é que nos tornámos todos peritos em economia. Quando deixámos de nos interessar pela vida para nos interessarmos pelo dinheiro e pela supremacia do dinheiro. Um grupo de gente que tem muito dinheiro e gosta de fazer ainda mais dinheiro resolveu que as pessoas que têm menos dinheiro têm de pagar os seus exercícios e erros. Se quiséssemos reduzir a crise financeira internacional a meia dúzia de palavras, podíamos dizer que o dinheiro acabou para aqueles que nunca o tiveram, de modo que aqueles que o perderam em especulações possam recompor os seus lucros e expectativas. Para que os bónus de 'performance' e de 'retenção' dos banqueiros, investidores e gestores se mantenham elevados, temos de andar rentes ao chão. E nenhum Estado, nenhum sistema político, nenhuma democracia consegue devolver à "nova ordem mundial" um módico de racionalidade. Porque os sacerdotes da ordem convenceram o mundo, democrático e globalizado, de que o mundo depende deles. De que o nosso bem-estar, o nosso salário, o nosso acesso, a nossa vida em geral dependem de um grupo de gente cujo mérito é o de multiplicar dinheiro por dinheiro.
Desde 2007, o que mudou no mundo financeiro? Nada. O que é que se aprendeu com a crise? Nada. Que regulação financeira internacional foi aprovada? Nenhuma. Nos EUA, 1% da população recolhe um quarto do rendimento do país. As vendas de diamantes Winston aumentaram 60% desde o ano passado. A diferença está entre os países que não abdicam dos direitos humanos e sociais da sua população, o contrato social, e os países que condenam uma fatia larga da população a prescindir dos seus direitos. Os BRICS são isto. Democracias assentes sobre a exploração do homem pelo homem, como se dizia antigamente. Países minados por corruptas oligarquias organizadas em partidos, uma minoria que administra a destituição de uma maioria. Entre a democracia grega do século de Péricles e o capitalismo de Estado da China vai uma diferença. Entre a miséria do Brasil e a miséria da índia nenhuma diferença. E prefiro mil vezes o sistema de um PIG, qualquer PIG, à democracia dos BRICS. Viajem para Mumbai e olhem em volta. Verão as mansões e a favela. Viajem para São Paulo.
Não podemos competir com estes países. A não ser que abdiquemos de todos os direitos conquistados desde a revolução industrial. A não ser que abdiquemos da democracia com contrato social.
Muitos 'peritos' defendem a extinção de direitos no trabalho. A sua famosa flexibilidade não assenta sobre a criatividade e a competência, assenta sobre a arbitrariedade. Porque maior igualdade gera maior oportunidade, e uma sociedade ganha quando há investimento público na in-fraestrutura, na tecnologia e na educação. E mesmo assim nunca conseguiremos competir com a China. Nunca teremos uma família em que os pais deixem os filhos em orfanatos improvisados para poderem trabalhar nas cidades distantes por um salário mensal de 20 dólares, considerado um alto salário. É esta a vida de muitos milhões de chineses que migram para as cidades e que deixam de ver os filhos durante quatro ou cinco anos. Para poderem pagar a educação desses filhos.
Uma sociedade controlada pela pressão do dinheiro e da falta de dinheiro não consegue recompor-se. A incerteza mata. A Europa precisa de afinar uma estratégia comum para sobreviver no mundo globalizado. Escolheu suicidar-se. E quer que nos suicidemos com ela como lémures. A única esperança é a imutabilidade da natureza humana. Em breve vão começar a surgir movimentos sociais, correntes, novas representações, que obrigarão estas democracias envelhecidas a reinventar-se e exigirão dos seus chefes políticos mais inteligência e visão e dos seus cidadãos mais participação. Menos tolerância à corrupção., Haverá uma revolução, sim, nem que seja intelectual. Nun- i ca houve tanta gente qualificada posta de lado, e essa gente j não vai deixar de pensar. A gente do dinheiro sabe que isto '• acabará por acontecer. Veremos se será preciso um segundo do crash para acontecer.
(Clara Ferreira Alves no Expresso de 30/4/2011)


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