Coragem, motivo de inocência ( VIRTUDE )

Chegava sempre atrasada e era a primeira a sair. O melhor que sabia dizer de si pautava-se entre a vertigem e a conquista de um acaso que só ela sabia inventar.
Era uma profissional duas vezes jovem. A idade do que sabia da profissão não cabia no seu próprio tempo. Parecia envelhecida pelas desculpas que gesticulava com as pequenas mãos brancas, de freira, tal era a sua convicção por isto ou por aquilo da sua vocação, longe de cátedras, quase sempre abertas a uma discussão. De olhos minúsculos quando semicerrados, como que a pedir uma breve iluminação de conversa, perguntava para si tantas vezes.
“Que vou ser eu quando for grande?”
De todas as vezes era-lhe roubada a resposta, até que um dia teve uma ideia genial no horário normal de trabalho e passou a entrar mais cedo, cada vez mais cedo, na espera de lhe acontecerem coisas diferentes, como naquele dia, que não viriam a surgir.
Violentou a espera por outra ideia brilhante aparecendo nas manhãs, fora de horas, insistentemente. Deixou de ouvir o despertador e a escova com que se penteava já não fazia parte dos dez minutos depois do banho. Regulou-se pelo destino do que queria ser, aterrorizada pela ideia de perder o lugar para alguém melhor comportado. Sentiu a decepção pelo que tinha sido quando foi chamada à pedra. Há dias, tão tarde que lhe dera o sono, numa noite de excessos e tarefas, guardava todas as dúvidas como uma menina que quer desvendar um presente. Logo depois teve uma soberba ideia recusada na mesma madrugada pelo cliente.
“Quando for grande, contrato uma sopeira! gritou intensamente.


O senhor da chispa ( TALENTO )

Se te falta talento, ouviremos o senhor que se segue.
Se tiveres intuição, sobra-te sempre tanto tempo que não dás por as horas passarem e para o tempo que te faltar, podes usar a imaginação para teres outra ideia, como os putos da escola fazem. Usam o período do recreio para reinventar o jogo da corda. Logo, podes juntar-te a nós.
Na nossa agência não temos artistas ocultos, ou melhor, os que temos estão submersos por resmas de A2, A4 ou ipês 5, se o freehand for preciso lá chegar, e têm um talento fabuloso. Não prometem absolutamente nada. Para eles, a intelectualidade cansa-os de tal forma que não desistem. São gente muito complicada, só sentem que prestam para alguma coisa depois de perderem quase tudo. Têm razões, porque são talentosos. O trabalho que fazem nunca é visível, porque nos seus entenderes um trabalho visível é marcado num qualquer cartão de ponto. Todavia, alguma coisa neles os faz olhar os relógios. Dizem que nessas alturas procuram encontros para as ideias, que já têm a puta-hora marcada. Esse modo é o que afinal eles são. Profissionais das ideias que, se preciso for, profanam-nas e no lugar de criarem a sua obra, autorizam trabalhos impossíveis que ninguém reconhece. Uma variedade de arte ou trabalho como qualquer outra que se vende.
Qual é o Senhor que se segue?


O senhor da chispa ( TALENTO )

Se te falta talento, ouviremos o senhor que se segue.
Se tiveres intuição, sobra-te sempre tanto tempo que não dás por as horas passarem e para o tempo que te faltar, podes usar a imaginação para teres outra ideia, como os putos da escola fazem. Usam o período do recreio para reinventar o jogo da corda. Logo, podes juntar-te a nós.
Na nossa agência não temos artistas ocultos, ou melhor, os que temos estão submersos por resmas de A2, A4 ou ipês 5, se o freehand for preciso lá chegar, e têm um talento fabuloso. Não prometem absolutamente nada. Para eles, a intelectualidade cansa-os de tal forma que não desistem. São gente muito complicada, só sentem que prestam para alguma coisa depois de perderem quase tudo. Têm razões, porque são talentosos. O trabalho que fazem nunca é visível, porque nos seus entenderes um trabalho visível é marcado num qualquer cartão de ponto. Todavia, alguma coisa neles os faz olhar os relógios. Dizem que nessas alturas procuram encontros para as ideias, que já têm a puta-hora marcada. Esse modo é o que afinal eles são. Profissionais das ideias que, se preciso for, profanam-nas e no lugar de criarem a sua obra, autorizam trabalhos impossíveis que ninguém reconhece. Uma variedade de arte ou trabalho como qualquer outra que se vende.
Qual é o Senhor que se segue?


Coisa-feita ( SUPERSTIÇÃO )

É num espaço vazio da existência que as coisas estão muito cheias de mistérios. É o arrebatamento do nada. Aqui há uns dias, era uma Sexta-feira 13 e aconteceu um problema qualquer de compreensão, porque no preciso momento crucial de um briefing, alguém disse que um demónio ia falar. Equívoco verbum, o sujeito trocou as voltas e chamou um nome feio ao cliente. “Demónio é você”!
O gajo foi para o olho da rua e, quando puxou pela caneta, deu por um dente de alho no bolso, lembrou-se que estava em Lua Nova, a sua pior fase, dela. Arranjou outro emprego em Lua Cheia e tudo lhe pareceu voltar ao normal. Não fora o tal demónio, poderia ganhar a vida como primeiro violino de uma banda de quermesse, daquelas que só ensaiam nas vésperas das procissões. Achou que continuava com alguma queda, anunciando-se publicitário noutra casa de fazer “bonecos”. Mas antes comprou cartas e búzios para solicitar de si mesmo outro universo quântico. Deitou-se muito tarde e chegou fora de horas à nova reunião. Inadvertidamente ouviu um arroto. O seu cliente acabava de mascar uma pastilha com sabor a funcho, para dar sorte.
- Desculpe qualquer coisita, disse de baixinho o seu respeitável interlocutor, que terminou assim: arranje-me um orçamento para veicular isto na página dos óbitos e deverá ter quatro por cinco centímetros, a um Domingo de cada mês, até ao próximo Março.
Estavam nesse dia em finais de Janeiro. O account fez que sim com a cabeça, medindo a presença do cliente e a de uma coruja embalsamada a servir de pisa-papeis. O profissional sentiu-se mera parcela de um sonho que queria ter quando chegasse a casa, o de limpar o seu Buda de marfim com o detergente líquido de marca, que tanto queria anunciar no seu próximo emprego.


Promoção escrita ( UTILIDADE )

Teria de escrever acerca do ferro, de lâminas leguminosas. Teria de escrever, indeciso, laudas, páginas, cadernos repletos de tipografia, à procura da melhor cerveja, do melhor esquema para vidros eléctricos e tracção às quatro rodas. Naquele dia, um choque em cadeia atrasou-lhe horários e com a raiva afastou a imaginação, com papéis em branco à sua frente. Uma inquieta procura arrastou-o até às sete, quando quase todos já desciam os elevadores que só subiriam no dia seguinte para fazerem mais anúncios. Sentia a falta de palavras como que uma anestesia lhe roubasse todos os movimentos. Percorreu o teclado à espera das próprias impressões digitais, que nada transportavam ao monitor, a não ser uma propositada luz azulada e sobre isso escreveu.
- A única imagem que sei ver é esta realidade imediata de quase nada saber.
Posto isto, optou pelo silêncio, adormecendo sobre blocos manuscritos que dependiam do ilegível. Levantou-se pulando das costas da cadeira com tudo o que lhe restava de profissional, convicto que ainda podia ser alguém para esta vida. Eram seis da manhã quando fez um café bem forte que vagarosamente tomou no bar da agência. De volta ao word, tentou reconstruir uma noite sem nada, com a frase que lhe faltava.
- Leve três na oportunidade de pagar somente dois.


Delírio e Concupiscência ( SENSUALIDADE )

Há maravilhas neste mundo e a maior de todas é a sensualidade. Com ela fazem-se anúncios, fazem-se desgostos, celebram-se jantares pela noite fora; fazem-se textos para maquetas tão lisas como nuas. São belos os seios de uma grande ideia. Logo, é de dia, matéria de debate, plano de marketing feminino. A sabedoria tem sempre a forma feminina da beleza de uma profissão, a das ideias, sentadas se necessário nos nossos joelhos, penetrando um dossier para uma memória descritiva, para conjurar o círculo matemático de um sonho. Sem nuvens, sem puras ilhas, com risos viciosos de um desconto porque o budget é masculino. Não acendas a luz; o teu olhar diz-me que o plano foi recusado; vejo-te passar os dedos pela promessa de um concurso com muita gente à mistura como quando esperas o instante de partida, ou o despertar de um vento que te eleve uma minissaia. Mas quem saberia melhor que tu penetrar o coração desse dossier? Não deixes que ele se ponha a caminho com as suas roupas mais belas, talvez as da concorrência, como aquele ou aquela que nunca mais se lembrará da nossa agência; usa os teus pacíficos e suaves dedos, como uma perna sobre a outra. Ou inventa outra ideia.


Padecimento com cura ( SAÚDE )

Leia esta bula. Vai ser-lhe útil. O marketing farmacêutico tem razões que só a razão regressiva não entende. Então, a sala de visitas da caixa de comprimidos está pronta. O problema é exactamente o mesmo e a solução, também. Sobra uma caixa de analgésicos vazia, depois do resto se dissipar na gripe mais próxima ou na dor menstrual do primeiro dia vinte e oito de cada mês. Disto sabemos nós, já que restou daí o indestrutível Trifene.
A vertigem com duplo significado pode ser uma doença que nos bate à porta. Se engolir estas palavras de uma só vez não terá vertigens, mas pode adoecer.
Agora vamos ao que nos interessa.
É oportuno evitar palavras tristes. Todos vocês já têm que chegue. De uma vez por todas, estamos fartos de lamúrias e, instintivamente, não queremos dores de cabeça, queremos médicos, queremos reuniões de ciclo, queremos a farmácia da esquina com os nossos stand-ups pagos a horas pelos nossos clientes. Sabemos disto há muito tempo, mas não nos cansamos de repetir. Porque entramos na nossa própria intimidade, higiene perfeita para um saudável negócio que não queremos ver ser feito em cacos. A regra para uma boa saúde é sabermos quem somos e, se sentirmos dores, é porque não sabemos distinguir o sofrimento da cura. Da cura de qualquer marca.


Doutrina. Comédia trágica ( SABEDORIA )

Um publicitário não descende de um publicitário. Repare-se. Um velho publicitário não é mais amado como o são os velhos pais. Não passam a sua maior idade com ares de avô genial e mimado, que volta à primeira idade. Um publicitário é sempre um filho adolescente que não sabe ainda tudo. Tem os olhos virados para o futuro, na medida exacta do que mais lhe interessa saber. Do presente. Muito bem... e o passado? O passado de um publicitário é o passado de uma boa quantidade deles. Instala-se-lhes um modo confuso de consciências sabedoras, mas ultrapassadas, por cada um ter sido antes, muitos. Tomam café e aspirinas para pensar bem e depois surgem como célebres activistas, com novas ideias e, com efeito, uma conta de subtrair ideias traz-lhes saldos positivos. Todo o publicitário produz informação para dizer que sabe mais que um outro e raramente procura saber o que na realidade era um papel em branco antes de ser um anúncio alheio. Como assim é, o passado de cada publicitário só conta noutra medida. Aquela em que a memória futura não é incerta, nem resvaladiça, nem longínqua. É com este pânico que fabricam a sabedoria próxima da vertigem, como forma de não enlouquecerem. Voltam regularmente com juízo à realidade que querem dizer. Todavia querem qualquer coisa estranha, obstinadamente. Coisas da vida, que não existem, exigem. Este mistério é para todos os publicitários um vertiginoso mas breve espaço, que reside entre eles e o próximo anúncio alheio, tantas vezes deles mesmos. Folhas de papel em branco cheias de significados por preencher.


PRÉ PAGAMENTO ( Marcas, nem vê-las )

A comida para o cão foi a última lata com que um homem encheu o carrinho. O casal empurrava com alguma dificuldade o veículo de rodas empenadas e chiadeiras, até à primeira caixa do supermercado. No rol das compras podia-se ler arroz da mesma forma que espuma para a barba. Um rol muito parecido com linhas brancas. Marcas no rol, nem vê-las. Aquela lista de necessidades continha a tal coluna reprimida, à direita, como a principal barreira do benefício, o melhor preço, com palavras-produtos alinhadas pela esquerda, muro do imprescindível familiar. Lá estava também o queijo tipo amanteigado, a pomada para os sapatos, a farinha de trigo, o açúcar amarelo, o sal. Na frente de cada item, o seu custo, por vezes multiplicado por dois, ou mais, conforme as unidades adquiridas. Tudo rigorosamente anotado até aos limites de um cartão de débito que não foi informatizado para ler marcas da preferência dos horários nobres, ou sejam de quem for, porque os seus limites não atendem campanhas publicitárias, aos insights inovadores, ao logotipo que na embalagem passou a ser rectangular, às quotas semanais de audiências, a explodirem de classes a, b, dos abecedários das estratégias de marketing, para produtos mágicos, belos e fofos. Os grupos alvos inscrevem-se hoje nas bandas magnéticas que só reconhecem zeros, muito iguais ao valor da imagem das marcas que se podem adquirir e dali não há diabo que os mova. Benefício relevante, para fazer chiar fortemente as rodas de qualquer veículo de compras até à próxima viagem do mês.
Chegada a noite, o casal desfez sacos de plástico, arrumou frescuras no congelador, secos para um lado, humidades à parte. Ela, surpreendida, chamou-lhe a atenção
– Olha que esquecemos a fruta!
– Pudera, resmungou-lhe o noivo. Evitei o “não autorizado”, vamos é ver o filme “Comunhão de Bens”, que alugamos ontem no clube.


Autoridade em real-time ( PODER )

Tudo deveria surgir da liberdade como dela surge a autoridade. Liberdade e poder são de facto os primeiros factores humanos que revelam inteligência. É com a inteligência que o homem comete muitos despautérios, mas ainda não se sabe ao certo se os comete por excesso de autoridade ou se por insistir no uso das liberdades. De cada vez que se instala um poder, a civilização promete dar um novo passo algumas vezes por dia, passos que determinam mais tarde ou mais cedo, autoridades adversas com promessas de liberdade. Não é demais lembrar: Se o poder é preconizador da liberdade, de que servem os minúsculos poderes onde é imprescindível a inspiração, ou a preguiça, ou os recreios onde se brinca às ideias que necessitam de tomates. De que servem as horas próprias para treinar os músculos das línguas. Para quê o burro de carga a que chamam de workaholic, que é uma espécie de asno inglês que se esforça nas horas vagas. De que servem os momentos de abrir e fechar as pernas, enquanto um desesperado soletra,- “não me apetece gajas que vão ao papa açorda, nem beatas que rezem no meu cinzeiro, nem foleiros de óculos escuros e músculos na tv”. Já sei então dos tímpanos em estado de coma. Servem as banalidades dos reality shows em real-time de extremas políticas, que são a mesma coisa que o extremar da falta de ideias, impura imaginação. Quem acha que pode fazer alguma coisa disto, diga que é uma cabala e vote em esconjuro. Considere as estatísticas como cortesia do poder, aos seus pés, se impressas na primeira página de um tablóide que sem querer voou por uma janela. Se nele tropeçou, foi um feliz acaso. Se reparar, nunca inserimos nele uma campanha política, infelizmente. Anúncios para a direcção geral dos espectáculos, também não. Viva! Não temos autoridade mínima.


Patê de Fígado ( MARKETING )

1/2 colher de margarida, 1 cebola picada, 250 gr de bacon, 250 gr de qualquer fígado, 150 ml de natas, 1 colher de farinha, 1 cálice de Porto, 1 colher de tomilho, 1colher de pimenta, noz moscada, 1 ovo e a sua atenção por favor.
Leve tudo a fogo brando e refogue.
Quando juntar o fígado pense no dos outros, como nós fazemos quando imaginamos coisas para si. Depois de tudo alourado no seu tacho (não importa a origem), ponha de lado a arrefecer. Sente-se e aguarde dez minutos, observando as leituras de uma caixa preta ou um texto do autor das “Conversas com Deus”. Agora sente que está preparado para redigir a receita da campanha anual, que entregará aos nossos fracos limites figadeiros. Não se esqueça da data do costume. Aquela a que já nos habituou. Para amanhã cedo. Não deixe que a sua realidade esturre só porque tem de ir de férias ou porque estaremos à sua inteira disposição antes da hora do seu voo. Olhe que a viagem para os condimentos que temos de adicionar é outra e depende da frescura do fígado do planeamento estratégico, do tempero fresquinho da nossa melhor dupla, do bico do gás do nosso director financeiro, do que ficar agridoce para o director-geral, que detesta maus fígados. Ele que não passa de uma bílis perfeita. Um conselho mais. Não barre no pão esta receita. Somos o diabo que a amassou.


Má-criação é que não! ( IRREVERÊNCIA )

A nossa expressão não será mais exigente em clareza do que a de qualquer cientista. No entanto em face aos desconcertos da história publicitária, nós, os poetas das marcas, contentamo-nos estupidamente com a nossa má consciência, até às tantas da manhã. Ou com as nossas próprias palavras. Ou com um cliente que nunca nos bate à porta.
Quando as mitologias dos prémios se esboroam no dia seguinte, é no nosso trabalho que encontramos o refúgio, nem que ele seja a vida própria na cadeira de uma matiné, ou mandar às favas o colega do lado pelo erro que mais tarde ou mais cedo cometemos. Não sabemos tudo, como todo o resto das agências do mundo, mas muito sabemos da nossa própria obra.
A obscuridade com que nos querem castigar já pertence ao que reprovamos desde o início da primeira década das nossas vidas, em que cumprimos mais do que a quarta, quinta e primeira classe. Não somos os comboios de ida e volta. Adquirimos uma única passagem.
Temos por missão a nossa má consciência e reprovamo-la. Entretanto, as nossas palavras estão neste anúncio que sabemos fazer.
Nada mais natural que o dia seguinte.


Quimera para inventores (IMPOSSÍVEL)

Mais vale arriscarmo-nos a uma desordem do que abandonarmos o impossível.
Os sabedores de ofícios aceitam o estigma das diferenças, ao qual chamam risco. Alguns deles decidem ficar sós e depois vêm para cá com as queixas do dia, os dias que correm mal. Esta espécie biológica dos costumes detesta o impossível. Fecham-se em salas de reuniões até às tantas, mas o que fazem, fazem-no em solidão. Existe muita gente a parir geniais ideias de segunda geração. São as ideias já criadas e desconhecidas, mas foram as primeiras. Que diferença fazem homens assim, de outros, que foram primeiros? Os primeiros são os génios recordados, para a história, os segundos não passam de génios para a história dos impossíveis. Portanto, tem raiva de todas as ideias, sem seres céptico, sem caluniares qualquer delas. Tem cuidados, alguma das novas ideias pode andar por aí, muito antes de teres nascido. Resta-te desvendar o mistério da próxima ideia impossível.
Para começares, lembra-te que a tua próxima ideia é uma vivência privada. Eles sabem disso e só por isto vão pensar em primeiro, reprová-la de seguida. Oferecem-te uma outra ideia que te vai parecer irrecusável, mas impossível. Ou não és tu um criativo.


Alegoria de um boato (FICÇÃO)

Não saberás nunca, mas não fiques decepcionado.
A nossa capacidade de ócio é inesgotável. Que o digam os bancos dos jardins da nossa cidade, instituições seculares, como as tílias e o aqueduto das águas livres, aprisionadas nos tanques ao lado das Amoreiras. Ou pensaste que uma água barrada pode brilhar como outra que desagua? É como se fossemos infiéis a esta profissão, é como ocultássemos a fracção de emoções do teu maquetista de serviço que quer vir ao de cima.
Ficção? É o absurdo do teu briefing que não faz falta a ninguém. Cada coisa por si é ficção, todas juntas, pelo seu todo, são uma ordem que não nos convém. Decerto que não esqueceste o prazo, mero gesto a que chamas, cliente. Que mania foleira, indecente, de leres ao pequeno almoço o IVA depois do briefing. Ou sentes que estás cansado de errar, ou pensas no que andas por cá a fazer. Olha que a escolha nunca é tua. Desperdiça o emprego, mas traz mais um cliente. Olha que o teu mistério é a vida que tiveres, que viveres, conta com a ingratidão, fabula de sorte ou de reorganização. Mas não insistiremos contigo. Aceites ou não o lugar, a tua tarefa será única, muito parecida com uma ordem de despejo ou um qualquer esquema fiscal para ser cumprido.


Eficácia, assombramento de um destino (ENERGÉTICO )

Sete da manhã. De preferência, qualquer dia do mês.
Essa fé sublime de nunca chegar a horas, porque o carro não pega. Os putos tem de chegar à escola, uma força inversamente proporcional aos horários de pais publicitários.
Duas horas depois. A impressora deu o berro, o informático mora nos arredores. A reunião começa às dez, o cliente é daqueles que não perdoa. O conceito de rigor humilha tanto como o medo do perigo. O director de marketing é amigo do nosso director geral, chegando a depender da imaginação, a redução de um enorme desgosto, caso a falha aconteça. A paixão por um lay-out não foi ainda impressa em A2, resta-nos uma outra máquina que só printa envelopes. O dia começa mal. Há por aí alguém neste segundo, bem melhor que nós; ou pior, que se danem. O telefone diz que ganhamos mais uma conta, tão enorme como o saldo da nossa conta corrente; bom senso é não pensar nela. Mas presta muita atenção no alívio que chegou às onze: o nosso cliente está atrasado pelas obras do Marquês, o director criativo piorou, o grito que deu é maior que o de ontem, o account foi tomar café. Pudera, quem não tem medo não é normal ou foi enganado pelo destino; a nossa memória é o espelho de uma ideia nova. A campanha foi aprovada, mas é um nojo que reprovamos.


Dicção profissional ( EMENTÁRIO )

MOMENTO A RECORDAR – As cinco primeiras vezes que um publicitário entra na casa de banho do seu primeiro emprego.
SEIOS DE REBIMBA-O-MALHO – Expressão do estafeta da mesma agência ao ver passar a recepcionista.
IDEIA FUNDAMENTAL – Desejo do director-geral de uma agência de publicidade no momento de conferir o aumento do budget do próximo ano.
QUARENTA CONTOS – O primeiro número que um estagiário a criativo conhece.
FÉ DOS CRENTES – Frase dita por um cliente no final de uma reunião no momento em que os representantes da agência se afastam.
PACOTE DE AÇÚCAR – Tudo o que foi causa de avaria da máquina de marcar o ponto numa agência portuguesa de publicidade.
COMÓ-MILHO – Alcunha de uma funcionária mulata, da agência SCS em Angola.
VAI LEVAR NO PACOTE – Outra das frases habituais de um copy, usada em conversas com o director criativo.
MERDA PARA O Z3 - Desabafo de um account quando recebe uma viatura diesel, com 1100 de cilindrada, como complemento salarial.
SÓ VOU PARA A CAMA CONTIGO – Final de um assédio entre publicitários da SCS.
DIRECTOR-GERAL DEFORMADO – Director de uma agência de publicidade, quando promovido a Presidente.


Limpeza dos dias ( DONA MANUELA )

Retornou aos caixotes, pelas dezoito e trinta. Encontrou nada e tudo, numa pastilha elástica ainda com cheiro, numa beata borrada de baton até ao filtro, na folha de papel com lindas cores, a marcador, no cartão de parabéns iluminado por uma data antiga. Aspirações, das quais só ficaram restos. Ela, a D. Manuela tem o poder de esconder os lixos no grande saco preto, igual a uma câmera escura de aterro. Ela é a senhora da limpeza e pensa:
- Quantas coisas a espécie humana, publicitária, não quer todos os dias. Puseram tudo de pantanas dentro destes caixotes.
Manuela imagina o universo de cada saco preto, como se tratando de um todo onde tenta descortinar existências. O historiável por baixo de cada mesa e tudo o que se deita aos sacos, antes de os fechar com um nó de cadafalso que acaba no próximo contentor, onde o absurdo tem sempre maus cheiros, com outras comidas de sobra.
A D. Manuela, empregada de limpeza, é a primeira a chegar, cria motivações quando desfaz as gotas secas de uma chávena de café, numa embalagem abandonada na última reunião, num imundo cinzeiro de beatificação, com a sua cúpula de vidro que levou horas a encher, como linha de demarcação, por separar vícios e estratégias.
A D. Manuela repete o seu sorriso pelas manhãs, estranha e impensável harmonia diária, essencialidade para todos. Mas é com a sua realidade que enchemos os caixotes do lixo, sem darmos por isso.


Sono profundo (DESCONTENTAMENTO)
O que é que determina o sindicalismo? O boletim meteorológico, não. Outras coisas? A necessidade medíocre de um clube, o trabalhar fora de horas dos horários dos caminhos de ferro, o método científico do comunismo, a grande ideologia emergente das religiões, a afeição entre pais e filhos, a sequência de absolutismos em part-time, o desperdício, a Agência & Comunicação, os problemas de consciência, o património da humanidade, um artigo num jornal da extrema direita, um canhoto expressionista inscrito num partido socialista, um combate utópico entre um peso leve e outro mais pesado, a relação formal de casais homossexuais, um filho que não vive connosco, trezentos contos, o exército de aproximação nacional, o não se poder fumar em grupo dentro da agência de publicidade, o poeta popular que adormece ao relento, a Associação das Agências de Advertising, a proibição do idioma inglês no turismo rural português, as mulheres que se queixam relativamente aos maridos por falta do politicamente correcto antes de adormecerem, o sexo científico por já existirem vacinas, o neófito estagiário de senhas de refeição, o frasco inteirinho das essências de um chefe criativo, as bruxas que puseram no caldeirão mais uma empresa de produção, as pressas que só dão merdas, o adorar gozar consigo mesmo quando faz dupla, percorrendo-se na ponta dos dedos sem sentimentos, o que é que se pode fazer por um salário, a desapropriação do que é nosso, o velho ditado, “aproveita a vida enquanto é tempo porque esta são dois dias e o resto é ganho”, o que nunca chegamos a saber, um defensor do racionalismo, a anedota que não faz rir um velho, o deslumbramento por um umbigo bem feitinho? Claro que talvez.
Bruscamente, levantou-se com o dia a nascer, decidido a fundar o Sindicato Português dos Publicitários & Ofícios Correlativos do Distrito da sua Cidade.


Aparências à parte (CURRÍCULO)

Já que por detrás de um casino podem estar escondidos soldados bem trajados, preferimos um bom carácter a um bom currículo.
Se nos batem à porta, vamos abrir. Quantas vezes nos entram para dentro besouros ou outros pássaros, animais de belos currículos e penas, de mãos dadas com o seu próprio carácter por definir. Carácter e currículo que nem sempre se falam, vivendo para toda a vida “amantisados”, mas separadamente. Alguém já disse que nesta profissão, quando as pessoas certas se encontram, algo de bom acontece e que, se tiverem pela frente um bom carácter, o currículo é o mero atalho que fica para mais tarde.
As aulas compram-se. Os diplomas já vêm impressos no fim de uma vida e os livros são-no da mesma maneira escritos. Duram uma eternidade nas prateleiras. Aprendem-se depressa, de mãos em mãos. Com o carácter deveria passar-se o mesmo. Faria sentido que à medida que o carácter crescesse, fosse acompanhado proporcionalmente pelos sucessos de um currículo.
Mas infelizmente não é assim. O carácter não custa, como as propinas.
O carácter não tem direito a certas notas no final do último período, mas deveria ter. É avaliado muito mais tarde, o que normalmente acontece tanto mais se o currículo for o maior possível, melhor ainda se acompanhado com uma carta de recomendações. Neste caso não o aconselhamos a bater-nos à porta.


Oblação íntima (CONSUMO)

A oferenda será louvor ou altivez?
Quando se levanta na ponta dos dedos um momento de prazer, chamamos um café à conversa. A conversa tem nome, o café tem marca. Robusta, Arábica.... em troca de cinquenta cêntimos de euro, porque a monotonia pode custar muito, muito mais dinheiro.
A extraordinária nobreza da linguagem desce ao empregado da caixa de um centro comercial, naquele preciso gesto de um código de barras: ele é um literato de grande superfície, o problema dele é de traduzir, é de transpor as línguas diferentes, até à última linha de uma factura, que dá pelo nome de total, sem trabalhar uma única palavra. O resto fazemos nós porque temos uma relação íntima com qualquer carrinho de supermercado, mera condução de embalagens.
De todas as disciplinas da comunicação, o “consumo” é, talvez, a mais fácil porque traduz qualquer afinidade dos humanos ao longo da generalidade das civilizações. A sua retórica não deixa de ter a única base racional. A vocação dos homens, eternamente criadores. Nós fazemos deles parte e cremos saber explicar o privilégio do talento, mesmo que os únicos objectos de primeira necessidade da nossa empresa sejam as emoções fundamentais do consumidor.


Reunião com todos (COMEMORAÇÂO)

A rolha da garrafa de um espumante parecido com uma gasosa provocou um berro maior que o estoiro de uma caçadeira de canos serrados. Quando a agência ganhava um novo cliente, era dia daquela bebida enjoativa, com sabor a “Rosas de Maio”, mas daquelas que cheiram a caules dentro de água com duas semanas. As pessoas entravam aos poucos na sala, acotovelavam-se à mistura com sorrisos dignos de nota. Pareciam objectos idiotas à procura do melhor lugar junto ao director, mas de caras voltadas para o mesmo sítio, uma parede branca, mascarrada à altura das costas das cadeiras da sala de reuniões. Ali não cabiam mais de vinte, mas pela força das circunstâncias do serviço, naqueles raros dias, se encostavam uns quarenta e oito, quantia suficiente para uma falta de ar, nunca compensada pelo gás da pindérica garrafa.
- Chega um bocadinho para o lado.
- Não posso e não me pises outra vez.
E dito isto pela boca de um, entrou mais outro, com um papel na mão que, apontada na direcção do director, era acompanhada por uma voz mais alta do que a da confusão instalada e, repetidamente, pedia:
- Posso mandar o fax ou queres assinar primeiro?
- Ainda não. Estou aqui para felicitar-vos pelo vosso empenho e esforço (olhos rasos de água), mesmo sabendo todos nós, este ano não tivemos aumentos de salário. Mas vivam todos felizes por mais este cliente e não se esqueçam da vossa missão. Hip, hip, Hurra!
- E eu não vou beber esta merda, pensava cada um por si e todos ao mesmo tempo.


Capataz que manda nisto ( CHEFE )

A variante de chefe aqui apresentada é a correcta até ordem contrária.
Os primeiros chefes desta profissão liam Nostradamus em manuscrito e ficavam permanentemente sentados numa mesa ao fundo das salas.
Deixaram como herança aquela célebre frase: “Compreendo o teu desalento, mas faz como eu faço, se quiseres ter uma carreira como a minha”. Um dos percursores foi despedido pelo sindicato da época. Num quadro à entrada da sua sala, podia ler-se. “Que viva Estaline”.
No principio do século vinte, um copy perguntou ao seu chefe publicitário: “Como posso eu seguir os teus conselhos se não aumentas o meu salário? Se o pagamento da minha renda de casa está em atraso, o meu filho necessita de um oftalmologista e a minha mulher está outra vez para ter bebé? “
– “Abre a tua agência”, foi a resposta do chefe.
O maior defeito de um chefe é, como se prova, praticar muito, nos outros. Um aqui outro ali, tem muito cuidado com as funcionárias e passam a ter alguns filhos. Os chefes publicitários actuais não são bem assim. O tempo é-lhes muito escasso, vivem preocupados e comem glútens e cereais pelo medo de mais tarde ou mais cedo detestarem-se, caso venham a sentir dificuldade em fazer chichi ou por se sentirem stressados. Também dizem que os chefes publicitários duram menos do que outros chefes e por dizerem mais vezes a expressão “porra!”.
Cá em casa usamos também outras expressões, não somos muitos e existimos todos. Se é um chefe e está a ler-nos, creia que o que já leu é pura imaginação sua e parta do princípio que ninguém sabe quem manda nisto.


Vaga para o próximo retiro ( AUSÊNCIA )
Ausência é: dois clientes ou produtos iguais não poderem residir ao mesmo tempo na mesma casa. É a versão livre para publicitários que cumprem com a lei. Porque raio o “Trifene” não nos permite pedir um patrocínio à “Aspirina”? Mesmo que não se entenda esta queixa, não abdicamos do nosso histórico conceito. A ausência de um deles representa o desperdício de energias, porque a palavra de ordem da mitologia publicitária “Mantenha se à nossa disposição durante algum tempo” não nos consome. Com este precedente, com este vazio, há inevitavelmente que cumprir as regras da ausência, culpada quer de extinções quer de fusões, que não são ainda o nosso caso. Consoante a perspectiva de se ficar mais só, projecta se um reordenamento cultural das marcas, multiplicando as mesmas agências e o facturamento. Por culpa das incompatibilidades.
Daí que o resultado da ausência nesta profissão, sobre coisas iguais, coisas que não podem coexistir no mesmo espaço, nem nas mesmas pessoas, é muito positivo. Querem ver? A agência A abre a agência A1. O cliente da agência assim a usufruir de duas agências pelo mesmo preço e o novo cliente da agência A1 não paga mais por isto ou por aquilo, mas paga, o que contribui para ajudar o A passa dono do network a adquirir um belíssimo lote de cavalos árabes com que tanto sonhara, ficando, de vez em quando, ausente.


Insistência e sítio (ASSÉDIO)
Há alguns dias que as suas motivações ficavam sem resposta. O convite para mudar de emprego envolvia a num silêncio, entrecortado por uma tosse alérgica ao ar condicionado de um gabinete sem janelas. A situação era lhe favorável em dobro. O salário duplo em oferta forçava a a repensar o texto para uma carta, demissão dirigida ao coração do seu mundo, de anos, naquela agência.
Levantou se num ápice e percorreu o corredor que faltava até ao director geral. Abraçou a maçaneta de uma outra porta com os dedos, mas sem que ninguém desse por isso. Recuou duas vezes, tantas como as que abraçou a almofada da porta.
Muito lentamente, surgiram lhe as recordações, a troca, a dádiva, quase vencida pelo desejo de uma aventura, mudança solitária. Uma estranha força impeliu a para o seu gabinete sem abóbadas, sem escotilhas. Adorava pensar que um bom emprego garante outro emprego melhor. Que diferença faria? Já sentada, começou por delimitar as horas de sucesso, os trabalhos fora de prazo, as margens mais baixas do que as da água que davam pelas barbas do chefe. Os briefings recusados pela malta pouco criativa, o divórcio anterior por outro grande amor de sua vida, a sua volatilização de memórias mal queridas, enquanto o pensamento também percorria a poltrona vermelha do lado, tantas vezes cama de directas para campanhas, apadrinhadas por actos de exultação. Aceitou naquela tarde o próximo emprego, mas com uma condição. Que no seu gabinete existisse uma poltrona da mesma cor.


Pirrónica alegria (ALEGRIA)

A alegria é um meio para exercer uma influência positiva na alma. Esta, tem alguma piada. Alguém acredita que um sujeito que admite, constantemente, que tudo lhe corre mal pode ser influenciado por uma alegria? Há tipos que apostam que os seus cálculos biliares existem por calcularem mal a distância entre o carro que conduzem e o carro da frente. Outros são ainda mais cépticos como o Tomé: preferem ir para a cama com mulheres de homens santos e pensam que, se forem apanhados, talvez recebam em troca uma oração do traído. O Tomé é tão avesso à alegria que nos velórios diz sempre o mesmo e passou a ser conhecido pela frase que lhe assenta a rigor: “É uma chatice, nascem uns, enquanto morrem outros”. O Tomé é tão negativista que a uma alegria de outros, comenta: “A vida é para ser levada a sério”. Quando abriu a sua agência de publicidade, deu lhe um sugestivo nome Pranto S.A.. Mas tudo vai construindo sem um sorriso e, apesar disso, lá conquista uns fregueses. Fez até uma razoável promoção de um produto que oferecia, na compra, televisores. Mas a preto e branco, por achar que os consumidores vivem debaixo da dominante imagem monocromática. Fuma maços de cigarro por dia e lê, lê, mas nunca passa da página trinta e dois, com receio de ser surpreendido por uma doença do foro respiratório ao soletrar o número da página 33.


Cepticismo pelo mesmo preço ( PROJECTO )

Mais do que atento ou pasmado, escutava cautelosamente as palavras de uma apresentação encomendada, pedindo para que o resto fosse dito pausadamente. O director do projecto concordou, continuando o monólogo de nomenclaturas: emissão da identidade, estratégia de intervenção mista, sinalética, teoria de cibernética, expressão visual, estatística, estrutura fractal, sóciodinâmica empresarial, simulação celular gráfica.
Eu disse, pausadamente, voltou a referiu o senhor do cachimbo.
Ok, vou tentar.
O apresentador baixou as pálpebras e as palavras fugiam lhe na direcção do presidente da empresa: projecto institucional, demanda técnica, audiovisual, síntese óptica, estética, sistematização, sistema de actuações, processo analítico, logotipo, imagem, comunicação institucional, sistema semiótico, personalização da identidade, introdução, diagnóstico final, conceito, plano de trabalho, determinação cromática, critérios de gestão física e volumétrica, signo, matéria prima, registo de imagem pública, geometria, pertinência estética.
Só um instantinho, pediu o presidente sorrindo. Parabéns, gosto do projecto para o nosso logotipo, o trabalho está lindíssimo. Quero que tragam mais uns bonecos com cores diferentes, amanhã à tarde, mas o budget mantém se.


Viagem dos desabafos (GRANDE PRÉMIO)
Admiravelmente, Cannes era a paragem mais próxima. Faltavam dois mil quilómetros a parecerem milímetros, tal era a excitação dos cinco escolhidos para visitarem o grande festival. Quatro criativos, uma account, uma velha carrinha e outros tantos sacos com roupas, roteiros, falta de espaço e pouco dinheiro. Quanto mais gastassem, menos recebiam no salário seguinte. Para ajudar, umas sandochas e uma dúzia de latas de Fanta laranja que, passada uma hora, ferviam mais que o motor do velho veículo conduzido por todos. A coisa até tinha graça não fora um deles sofrer ao momento de cólicas intestinas, que não permitiam tempo a paragens, para ir desabafar lá fora. Ou abriam os vidros e o calor de Andaluzia entrava. Ou fechavam as quatro janelas e o ar condicionado devolvia, friamente, aquele fedor insuportável. Certas frases, vindas ora de um ora de outro, perdiam se com a velocidade da paisagem.
Hoje é um novo dia.
Não há dinheiro que pague esta brisa.
E quem será que ganha dinheiro com ela?
Toma os comprimidos, minha besta.
Felizmente que só ele tem necessidade.
O coiso? O peido, chiça!
O problema é que não nos conseguimos separar.
Engole a saliva e não respires pelo nariz.
Esquece e retoca a tua maquilhagem.
Disfarça o cheiro predominante desse cadáver.
Finalmente, instalados e de credenciais ao peito, entravam no Palais, para assistirem à primeira sessão de audiovisuais à cunha. Lá estava na tela o spot que seria o grande prémio daquele ano. Trinta segundos de cinema, para um antidiarreico.


Gritos Insignificantes (DIPLOMAS)

O seu aborrecimento já se tornara, a partir das dez da manhã, bem pior que a sua angústia lá para os finais das tardes. No verão, ainda lhe escapava o olhar na direcção da água escura de muito azul da baía, em frente do seu gabinete. Naquele dia, não. O nevoeiro de Março mostrava lhe um imenso compartimento estanque entre ele e o exterior. Como era seu hábito, chegava pela manhã, quase que às mesmas horas, acendia um cigarro antes de se sentar e semicerrava os olhos, rumo aos diplomas que cobriam a parede em frente da sua secretária, muito semelhante a um estaleiro em miniatura onde alguns roughs e escritos formigavam sem ideias, à mistura com outros papeis dobrados em quatro, que bem o recordavam dias de glória, volumosos discursos, subidas e descidas aos palcos, écrans com o seu próprio apelido. Sem querer, soltou se lhe um assobio e entoou o som do musical de fundo das “Pontes de Madison”. Tentou resistir, enquanto as lágrimas corriam pelos lados do seu rosto e desfocavam lhe os títulos dos prémios emoldurados, que na sua frente compunham o seu lugar ermo e desabrigado, trazendo lhe a lembrança dos consultórios de Naturopatia a abarrotarem de simpósios justificados.
Sentiu inchar a maçã de Adão e deu um grito:
– “A propósito de insignificâncias, o que faço aqui sem um ramo de bétulas?”
No entanto limitara se a falar sozinho coisas assim, entre as quatro paredes e um silêncio penoso, substituído pelo abrir da porta e pela voz da sua account preferida, tomada do pior humor e de um vestido muito apertado da cor da baía, que lhe anunciou
Quando é que terminas o tríptico que te pedi ontem à tarde ?


Alucinação lixada (ENTUSIASMO)

Nem os cânones configurativos formais podem limitá lo.
É um entusiasta. O seu trabalho caracteriza se por uma intenção de investigação sistemática, sorrindo quase sempre. As suas tarefas também são teóricas, nas interlações das formas e das cores, partindo para a alegria do elementar. Quando o incomodam, desabafa e repete: “vão se lixar!”
Só o entusiasmo o faz aspirar à liberdade e consegue o entre a função e a criação, entre as normas e a intuição. Os briefings são todos iguais, conclui. Sabe, como ninguém, diferenciar os efeitos psíquicos dos físicos e pelo meio tem sempre que se satisfazer. Mas o tempo que lhe resta não dá para tudo e desculpa se como no outro dia que disse de baixinho. “As gatas mais novas, deixo as para os patrões. Eles tem outras necessidades. Os gajos gostam que eu trabalhe fora de horas”.
Quando lhe falam de coisas adequadas, faz se de lorpa, veste um fato domingueiro, calça uns patins e passa velozmente sobre oito graus negativos pelos esquiadores equipados a rigor. Não esquece as estatísticas, faz relatos sobre os ofícios de um Mac, com quem tem uma vida vulgar e uma carga de trabalhos. Com ele, ganha fôlego para o último entusiasmo: o de jamais fundar a sua agência de publicidade.


Destino compulsório (O CRIATIVO)

Há uma Raça que evita reformar se. Uma Raça que nunca se deixa apanhar pela vida. Pelos instintos também não. O fim é uma linha que nunca ultrapassam, sempre de pêlo na venta. Nos seus sonhos, apresentam se sozinhos, são sonhos que só eles imaginam. Fazem deles uma ideia, ou vice versa. Ocultam o essencial e dão significados à inspiração e à sorte. Deles ao ofício existe uma distância incomensurável. Uma constante desarmonia para quem assiste. Quando a realidade se intensifica, não saem de si e ficam a aguardar pelos domínios do imaginário. Não conseguir, afecta os; se o conseguem, entram em descontentamento como se o real nunca possa apresentar se lhes. Quando constróem, estabelecem uma união com o talento, único impulso que os faz serem outros, porque ficam à margem de alguma coisa. Sem darem por isso, não comem nem vêem o mar como as outras pessoas. São infiéis aos horários normais e não se humilham fora de horas por ideias funcionais, ou por aquilo que não lhes é acessível. Não cumprem o destino que lhes cabe. Quando morrem levam consigo uma obra acabada e dela só deixam a sua opinião onde ela é mais compulsória. Por cá, chamam lhes a “Raça Criativa”.
(Texto de Manuel Peres)