Os homens do Presidente
por Clara Ferreira Alves
no "Expresso"

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Os homens do Presidente

Eu acredito que o Presidente Bush não sabia. Na guerra, na guerrilha, nas invasões e ocupações, nas anexações, cometem se atrocidades. Na guerra branca, negra, islâmica, ocidental, hindu. Na guerra dos Balcãs ou da Tchetchénia, na de Israel e da Palestina, na do Tibete ou do Sri Lanka. Em qualquer lugar do mundo, neste preciso momento, alguém está a ser assassinado pelas assassinas razões da guerra, não a guerra militar, um conceito simples, mas a guerra entre os homens, a guerra dos homens entredevorando se, chacinando se, aniquilando se.

Acredito também que as famílias, pelo menos algumas famílias, não sabiam. As famílias daqueles soldados americanos que aparecem nas fotografias, homens e mulheres, a sorrir, fotografados em pose feliz junto a corpos nus e humilhados e escorraçados da humanidade. Um dos objectivos da guerra não é, como nobremente nos ensinam os incipientes manuais de história cravados de noções geopoliticas e propósitos românticos ou civilizacionais, mudar o mundo e acabar com opressões. O que a guerra, a «boa» guerra quer, aquela que nós fazemos desde a II Guerra Mundial, não é libertar os povos do «Mal» e instituir o «Bem». A guerra prolonga interesses políticos, dilata os, executa os, e os interesses politicos são movidos e oleados pelas engrenagens dos motivos económicos. A guerra do Iraque não se destinava apenas a ser movida contra um único homem, e até nisso ela se quis aproximar do conceito de guerra justa a da guerra da Europa contra Hitler e a substituir a tirania desse homem por uma democracia. A guerra do Iraque tinha, e ainda tem, vastos lençóis de petróleo por baixo do deserto de areia. Agora, que tudo correu mal, o libertador ocupando e o rio de petróleo secando, a guerra do Iraque começa a mostrar a face verdadeira, que é a de todas as guerras: a barbaridade, a desumanização, a crueldade. A guerra desumaniza, se não o fizesse não seria guerra, e os soldados não conseguiriam travar a guerra. E é disto que nos esquecemos todos, nós, os espectadores inocentes destes horrores, e eles, os senhores da guerra, os que enviam homens e mulheres para matar e morrer na guerra

Imagine se um rapaz de 19 ou 20 anos, da Carolina do Sul, ou do Texas. Alista se, porque quer uma bolsa para estudar, ou quer ganhar dinheiro, ou quer viajar, ou quer servir o seu país whatever that means ou quer sair da cidadezinha que o sufoca e correr o mundo. Alista se, por qualquer razão. Deixa a casa, a familia, o lugar, deixa os amigos, a namorada, a mulher e os filhos, deixa tudo o que conhece. Durante o tempo de treino que o transformará num soldado e numa peça militar, num cumpridor disciplinado de ordens superiores que lhe vão ensinar a matar e a sobreviver, a disparar sobre outros homens e mulheres, o rapaz começa a desenvolver as suas capacidades de predador. Cresce lhe uma garra na mão. As sevícias, como todos sabemos, e não é preciso ver filmes de Hollywood, começam logo no quartel, abusos sexuais, torturas de camarata, castigos, humilhações. O «drilling» imposto pelos sargentos é aplicado para retirar ao soldado a sua identidade humana, a sua piedade e compaixão, a sua fraqueza, e tomá lo um assassino controlado e contratado pelo Estado. E um assassino, aqui, é apenas alguém que é capaz de matar alguém. E nós, cá deste lado dos bons costumes e das boas intenções, e da sacrossanta ignorância da vida dos quartéis, achamos que o rapaz do Texas se transforma sem risco e sem preço, de um dia para o outro, num soldado. Não. Para ser um soldado, e estar em condições de ir para o Iraque ou o Afeganistão, a Somália ou a Bósnia, o rapaz teve de ser dessensibilizado, despido de atributos humanos. Se tal não acontecesse, o rapaz chegava a Kandahar, ou Bassorá, e começava a chorar, ou a gritar, ou a querer ir se embora. Podia começar, mais perigoso ainda, a interrogar se: o que faço eu aqui? Como Rimbaud na Abissínia, mas sem a poesia. Um soldado não pode fazer isto, embora alguns façam. Lembramo nos daquele soldado que chegou ao Iraque, e foi filmado pela CNN a chorar: eu não sou capaz de matar, eu quero ir para casa, eu não me sinto bem. Um marine que não chegou a ser, removido e entregue a conselho de guerra. É para evitar cenas patéticas que a guerra forma guerreiros, e os ilude sobre a sua missão humanista. Ao cabo de uns meses no teatro de guerra, o rapaz do Texas já viu matar e morrer, já levou com as tripas do companheiro na cara, já ficou salpicado de sangue, e aprende a odiar o que era uma abstracção e agora tem corpo. Existe, na sombra, um desconhecido que o quer matar, que o quer mutilar e torturar. O inimigo. No Iraque são os «hajis», no Vietname eram os «gooks». Qualquer filme sobre guerra mostra a desumanização do soldado, basta ver Apocalypse Now, um tratado sobre a viagem ao coração das trevas. The horror, the horror. O filme, tal como o livro de Joseph Conrad, trata desta metafísica, do ponto sem retomo em que a morte deixa de fazer sentido a não ser como espectáculo, como pirotecnia, como «nonsense». As imagens nocturnas, vistas com lentes de infravermelhos, de Fallujah a ser bombardeada pelos canhões de um AC 130, as imagens do bombardeamento de Bagdade, são simétricas das imagens de Apocalypse Now, os raios de luz mortal ferindo a noite e a retina deslumbrada do rapaz do Texas que sabe que vai morrer, que tem e não tem medo de morrer. Um dia, uma noite, o rapaz massacra uns civis inocentes, porque perdeu o controlo dos nervos. Ou toma se, de repente, um sádico. E descobre que gosta de matar. Este gosto amargo e doce, o de possuir outro ser humano, o de o aviltar, o de o humilhar, o de o seviciar e ser o dono dele, é um travo que fica na boca. Como fizeres assim acharás, diz a Bíblia. O rapaz acaba a tirar fotografias da vítima como troféu e recordação de guerra. Aconteceu sempre, aconteceu na nossa guerra colonial as cabeças empaladas dos negros, as negras esventradas e violadas, nuas , fotografias passadas de mão em mão como um símbolo de força e riso num lugar de lágrimas. É isto, também, a guerra. Mas o Presidente Bush não sabe, porque nunca saiu do Texas. É, como nós, um inocente. Mas é o Presidente.


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