A Caixa de Pandora
por Maria José Morgado

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A Caixa de Pandora
Por MARIA JOSÉ MORGADO
"Público" de quinta feira, 06 de Maio de 2004


Os Estados Unidos estão a começar a agir contra os oceanos de corrupção da América Latina, recusando vistos a políticos corruptos. Motivo: a corrupção é tão grande que receiam que as Honduras e as Argentinas se tornem num bom terreno para grupos terroristas lavarem dinheiro ou comprarem armas.

Se o combate à corrupção entre nós falhar, terão também de se preocupar connosco.

O ponto nevrálgico deste combate inadiável centra se nos métodos de trabalho. Não é possível apoiá lo e simultaneamente criticar os métodos de trabalho dos investigadores e do tribunal a propósito da demora dos interrogatórios, das detenções e buscas feitas oportunamente. A esse respeito logo se levantam os intermináveis choradinhos da sentimentalidade garantística, como se a condição social dos arguidos, ou o tipo de crimes, impusesse maior generosidade processual.

Em relação à criminalidade de rua, à violenta, à dos "gangs" tradicionais do tráfico de droga por exemplo, nunca ninguém vislumbrou exagero na aplicação do método prender apreender desmantelar. A subida da tensão entre a eficácia e as garantias da defesa pode até reforçar a lealdade processual, quando a incursão no mundo dos factos obedece a princípios de legalidade e de eficiência.

A actuação no terreno, com o uso especializado das técnicas policiais adequadas, permite ultrapassar as dificuldades quase invencíveis criadas pelos filtros utilizados por esta criminalidade: a volatilidade das provas, a opacidade das condutas, os pactos de silêncio, a aparência empresarial.

Um outro filtro muito português diz respeito aos "sacos azuis", ponto de confluência dos desvios que subvertem as instituições e corroem o Estado.

Não há polícia nenhuma no mundo que obtenha êxito neste combate se ficar a dormir em cima dos papéis ou a ver o mundo da janela do seu gabinete. É um dado da experiência das polícias.

É por isso que o método de surpreender o rato enquanto come o queijo, que era essencial para reprimir o crime de rua e garantir níveis de segurança satisfatórios, não é menos necessário estando em causa a protecção do Estado de direito. Este é o único que permite a actuação dos tribunais em tempo útil, a aquisição e conservação da prova em ordem a um julgamento equitativo. O Grupo de Estados contra a Corrupção (Greco) tem considerado positiva a visibilidade da repressão da corrupção: um meio inestimável de fazer pedagogia e prevenção.

Esta actuação proporcional à gravidade dos factos, quando usada por profissionais competentes, é compatível com o quadro das garantias processuais. Só não é compatível com as inconfessáveis expectativas de impunidade que advêm da morosidade processual. Não é possível continuar a seguir dois códigos de processo penal. Um para o crime de rua, outro para o crime de colarinho branco. Os métodos de investigação devem ser determinados pela gravidade dos crimes e não pela condição social dos arguidos.

Etimologicamente, "corrupção" significa "ruptura". Neste caso, ruptura dos valores democráticos. Essa ruptura acentua se cada vez que aumenta a distância entre a consumação dos crimes e a sua repressão, acusação e julgamento. Esta "pro actividade" policial é ideal para vencer a morosidade que anestesia a justiça penal, impedindo que através das condenações justas se reafirmem os valores democráticos da isenção, transparência, igualdade. Tem sido esse o nosso drama.

Também não é possível aprofundar os resultados da luta contra a corrupção sem uma estratégia de coordenação e concentração dos casos mais graves. É uma recomendação dos trabalhos do Greco. Com a dispersão territorial dos processos, a investigação corre o risco de entrar em debandada e de perder a radiação das provas.

Paradoxalmente, abriu se a caixa de Pandora. Permitindo nos ver que na sociedade portuguesa existem zonas de risco onde se concentram as principais fontes de corrupção. Localizam se nas autarquias, no futebol, no financiamento ilegal dos partidos e na administração central.

São feitas duma apertada malha tecida pela degradação dos serviços, acumulação de cargos, manipulação da política de solos de acordo com os interesses ocultos de empreiteiros desonestos, articulação entre autarcas gananciosos e sectores da economia paralela, financiamento ilegal dos partidos. Tem como "modus operandi" a técnica dos "sacos azuis", a apropriação dos fundos públicos, em suma, uma atitude predadora em relação ao aparelho de Estado. Um caciquismo mascarado de capitalismo.

Pelo meio, surgem as ligações futebol autarcas construção civil como cortina de fumo e "offshore" da corrupção à portuguesa. Aí acabaram por se concentrar progressivamente fontes entrelaçadas de corrupção.

Estes factores de corrupção são muito opacos e densos, oferecem resistência constante à fiscalização e ainda maior à repressão. Por essa razão, o combate à corrupção é um combate de todos os dias, em evolução permanente, que nunca tem fim. Os níveis de impunidade atingiram um ponto tal que qualquer pessoa percebe que é mais fácil combater a corrupção do que viver com ela.

Uma vez aberta a caixa de Pandora, há que abandonar a doutrina da pieguice garantística, perceber a especificidade do fenómeno, as exigências da investigação criminal, porque será a única forma de não se desperdiçar o trabalho de polícias e magistrados competentes, dedicados e partidariamente daltónicos.

Procuradora geral adjunta


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